terça-feira, 31 de julho de 2012

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudência


Tribunal Constitucional Português


Relatório da Delegação Portuguesa


Roma, 1 a 3 de Outubro de 2007


2


Introdução


1. A Constituição da República Portuguesa reconhece expressamente o princípio


da dignidade da pessoa humana logo no seu artigo 1º, que diz:


« Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e


na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e


solidária.»


O artigo 1º, que abre o discurso constitucional, encontra-se inserto nos


«Princípios Fundamentais», que antecedem a Parte I, relativa aos «Direitos e Deveres


Fundamentais». Nenhuma das normas que compõem a Parte I volta a fazer menção


expressa ao «valor» ou ao «princípio» da dignidade da pessoa. Assim, diversamente do


que sucede com a Constituição espanhola (que consagra o princípio no nº 1 do artigo


10º, e portanto a propósito dos

direitos e deveres fundamentais

), ou do que sucede com


a Constituição italiana (que parece implicá-lo no seu artigo 2º, quando diz que a


República garante e reconhece

os direitos invioláveis do homem

), na Constituição


portuguesa a dignidade da pessoa, enunciada como sendo a «base» da República, surge


fora

e antes

do sistema dos direitos fundamentais.


O sentido que a doutrina tem conferido ao princípio decorre em grande medida


da

clareza

desta sua inserção sistemática. Diz-se em geral que não existe, na ordem


constitucional portuguesa, nada que seja semelhante a um «direito subjectivo à


dignidade», dada a dimensão antes do mais objectiva do princípio que é consagrado no


artigo 1º. Posto que, aí, a «dignidade da pessoa» surge, ao lado da «vontade popular»,


como sendo uma das

bases

da República, o sentido que se lhe deve atribuir será antes


do mais

objectivo, na exacta medida em que são sempre

objectivos os critérios últimos


de legitimidade de todo o poder político estadual:


o que o artigo 1º, nesta parte, quer


dizer, é que, em Portugal, o poder do Estado não se qualifica como poder legítimo


apenas por ser «democrático». Como o que o sustenta é, para além da «vontade


popular», o princípio da «dignidade da pessoa», o poder do Estado só será um poder


legítimo enquanto for exercido

propter nos homines et propter nostra salutem.

O


3


«valor» da dignidade humana tem portanto desde logo uma dimensão objectiva, pois o


que nele vai incluído é, à partida, algo mais do que um direito.


A afirmação é assaz consensual na doutrina

1.

Como também é consensual esta


outra: com o alcance que lhe é dado pela Constituição – de critério último de


legitimidade do poder político estadual - o princípio da dignidade da pessoa humana


acaba por ter um conteúdo de tal modo amplo (idêntico afinal de contas a um dos


elementos constantes da tradição do Estado de direito) que não chega a ter densidade


suficiente para ser fundamento directo de posições jurídicas subjectivas. O que nele se


contém é por isso, e ao mesmo tempo, algo mais e algo menos do que um direito

2

.


Quando muito o princípio confere ao sistema constitucional de direitos fundamentais


unidade e coerência de sentido,


ajudando as tarefas práticas da sua interpretação e


integração. O que se lhe não pode pedir é que ele seja tomado, em si mesmo, como


fonte de um

outro e autónomo

direito (fundamental).


2. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem-se mostrado basicamente


consonante com esta orientação doutrinária.


Com efeito, foi logo numa das suas primeiras decisões que o juiz constitucional


português foi chamado a interpretar o princípio contido no artigo 1º

3

. Seguiu-se-lhe uma


jurisprudência abundante, que conta já com duas décadas, e que apresenta traços


unificadores e tendências constantes. Uma das tendências constantes é a da prudência e


a da parcimónia. Desde 1984 que o Tribunal tem sido

prudente e parcimonioso -

quer


quanto à definição do conteúdo do princípio, quer quanto à avaliação do sua densidade


normativa ou do seu «alcance» prescritivo


.


O Tribunal tem sido antes do mais prudente quanto à definição do que seja a


«dignidade da pessoa humana». Embora pareça ter aderido, em certos casos contados –


e a eles voltaremos – à chamada fórmula de Dürig (que, recorde-se, propunha como


critério interpretativo do conteúdo do princípio a ideia segundo a qual se deveria


1


Segui de perto a formulação de José Manuel Cardoso da Costa, «O Princípio da Dignidade da Pessoa


Humana na Constituição e na Jurisprudência Constitucional Portuguesa», em


Direito Constitucional,


Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho,


Dialéctica, São Paulo, 1999, pp. 191 e ss.


Mas veja-se também – e reflectindo o consenso doutrinário a que me refiro no texto – J. J. Gomes


Canotilho/Vital Moreira,

Constituição da República Portuguesa Anotada,

4ª ed., Coimbra, Coimbra


Editora, p. 198 e José Carlos Vieira de Andrade,


Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa


de 1976,


3ª ed., Coimbra, Almedina, pp. 113 e ss.


2

Assim mesmo, José Manuel Cardoso da Costa,

ob. e loc. cits.


3


Acórdão nº 6/84, em Diário da República (doravante, DR), IIº série, nº 101, de 2/5/84. O Tribunal fora


instituído, por revisão constitucional, em 1982, e iniciara funções em 1983. Regressaremos adiante ao


conteúdo desta decisão, que foi de facto das primeiras a ser proferida pelo Tribunal.


4


considerar lesada a dignidade humana sempre que, por acção do Estado, o homem


concreto fosse degradado à


condição de objecto, de mero meio para a obtenção de um


fim ou de medida substituível


), a verdade é que na maioria das decisões o Tribunal tem


evitado fixar um sentido para a expressão constitucional. Constante tem sido, em


contrapartida, o reconhecimento do

lugar

que tal expressão ocupa nas estruturas


fundantes do Estado de direito: «valor supremo»

4, «princípio estrutural da República»5

,


«[princípio definidor] da actuação do Estado de direito democrático»

6

ou «vector


axiológico estrutural da própria Constituição»

7

- tudo isto tem sido dito a propósito da


função


que o princípio da dignidade humana ocupa no sistema constitucional. Mas o


reconhecimento da importância determinante dessa função não tem sido acompanhado,


na expressiva maioria dos casos, de pretensões de definição do conteúdo do princípio.


Em segundo lugar, o Tribunal tem sido prudente, e parcimonioso, na avaliação


que faz da densidade normativa ou do «alcance» prescritivo do princípio. Neste aspecto,


a sua consonância com a doutrina – que como já vimos, lhe reconhece apenas um


amplíssimo conteúdo de pendor objectivizante – não poderia ser maior. Aliás, tal atitude


‘prudente’ ficou exemplarmente resumida numa sentença de 1991, que se tornou por


isso numa espécie de

leading case

em matéria de interpretação jurisprudencial do que


seja (ou melhor, do que

valha)

o princípio da dignidade da pessoa humana. Vale a pena,


por isso, recordar aqui tal sentença.


No Acórdão nº 105/91 o Tribunal foi chamado a decidir, através de um recurso


de constitucionalidade, se seria ou não inconstitucional – tão só, note-se, por violação


do princípio da dignidade da pessoa humana – a norma do Código Civil que permitia a


apenas um dos cônjuges requerer o divórcio independentemente da vontade do outro


cônjuge, quando houvesse entre ambos separação de facto por seis anos consecutivos. O


recorrente (no caso, o cônjuge ‘inocente’ na separação) alegava que tal violava o


princípio contido no artigo 1º da Constituição, por implicar o regresso ao repúdio como


forma unilateral de dissolução do vínculo conjugal. O Tribunal não lhe deu razão. E


disse, a propósito do «alcance» prescritivo do princípio da dignidade:


«Não se nega, decerto, que a ‘dignidade da pessoa humana’ seja um valor axial e


nuclear da Constituição portuguesa vigente, e, a esse título, haja de inspirar e


fundamentar todo o ordenamento jurídico. Não se trata efectivamente – na afirmação


4


Acórdão nº 349/91, DR, IIª série, nº 277, 12/12/91, p. 12 270


5

Acórdão nº 16/84, cit.,

p. 369


6

Idem,

p. 371.


7


Acórdão nº 28/2007, DR, IIª série, nº 46, 6/3/2007, p. 5982


5


que desse valor se faz logo no art. 1º da Constituição – de um mera proclamação


retórica, de uma simples ‘fórmula declamatória’, despida de qualquer significado


jurídico-normativo; trata-se, sim, de reconhecer esse valor – o valor eminente do


homem enquanto ‘pessoa’, como ser autónomo, livre e (socialmente) responsável, na


sua ‘unidade existencial de sentido’ – como um verdadeiro


princípio regulativo


primário da ordem jurídica, fundamento e pressuposto da ‘validade’ das respectivas


‘normas’. E, por isso, se dele não são dedutíveis ‘directamente’, por via de regra,


‘soluções jurídicas concretas’, sempre as soluções que naquelas (nas ‘normas’ jurídicas)


venham a ser vasadas hão-de conformar-se com tal princípio, e hão-de poder ser


controladas à luz das respectivas exigências. [.]) Simplesmente, não pode também


deixar de reconhecer-se que a ideia de ‘dignidade da pessoa humana’, no seu conteúdo


concreto – nas exigências ou corolários em que se desmultiplica – não é algo de


puramente apriorístico (…) ou a-histórico, mas algo que justamente se vai fazendo (e


que vai progredindo na história, assumindo, assim, uma dimensão eminentemente


‘cultural’. (…) Ora, este ponto reveste-se da máxima importância, quanto à


possibilidade de emitir um juízo de inconstitucionalidade sobre determinada solução


legal, com base tão-só em que ela viola esse valor, ideia ou princípio.

8

»


Este trecho merece realce porque nele se condensam de forma clara


todas as


razões


justificativas da ‘prudência’ e da ‘parcimónia’ do Tribunal. Em primeiro lugar,


nele se condensam as razões para a ‘prudência’ quanto à pretensão de definição do


conteúdo do princípio. O que aqui se diz é que a natureza

aberta

da ideia de ‘dignidade’


aberta

à história e à cultura – convive mal com a excessiva conceptualização ou com a


identificação apriorística de conteúdos. Um princípio assim aberto não se ‘define’.


Aplica-se (ou não) às circunstâncias do caso, visto que nem por isso – nem por ser


assim ‘aberto’ - deixa de ser e de revelar Direito ( ou como se diz no Acórdão, nem por


isso se transforma em mera

fórmula declamatória). A questão, porém, está no

modo da


sua aplicação.


E também aqui o trecho é claro: por via de regra, não são dedutíveis do


princípio e só dele ‘soluções jurídicas concretas’. O «alcance» prescritivo do princípio


fica assim precisado.


8


Acórdão inédito


6


3. Toda a jurisprudência subsequente ( mas também a anterior) se manteve fiel a


esta dupla ‘estratégia’ do Tribunal, que se traduziu, finalmente, em

não fixar

o conteúdo


do princípio e em

não sobredimensionar

o seu «alcance» prescritivo próprio. Daí que só


em poucos casos se tenham proferido sentenças de inconstitucionalidade por violação


directa


da «ideia» ou do «valor» da dignidade da pessoa.


Contudo – e este é o ponto que agora interessa salientar – tal não impediu que,


de uma forma ou de outra (ou seja, com lugares diversos na argumentação do Tribunal),


o princípio da dignidade da pessoa humana acabasse por valer como um verdadeiro


princípio operativo


de transformação da ordem jurídica portuguesa. Sobretudo, tal não


impediu que o princípio funcionasse como elemento propulsor da adequação


progressiva da ordem infraconstitucional à ordem constitucional. É difícil, neste campo,


proceder a arrumações ou tipologias precisas; mas parece seguro que a


operatividade


transformadora do princípio se veio a manifestar em três domínios essenciais:


(i) Na adequação progressiva do direito penal e do direito processual


penal à ordem constitucional, sobretudo pela identificação – a partir


da ‘ideia da dignidade’ da pessoa – dos princípios estruturantes tanto


do direito substantivo quanto do direito adjectivo;


(ii) Na ‘descoberta’ – justamente a partir da ideia de ‘dignidade’ - de


direitos fundamentais não escritos,


sobretudo na «descoberta’ e na


afirmação de um

direito [fundamental]

ao mínimo de sobrevivência


condigna;


(iii) Na delimitação do âmbito de protecção de diferentes direitos.


Deve dizer-se desde já que estes `três domínios’ não têm todos a mesma


dimensão e importância. O terceiro ocupa um lugar relativamente marginal no acervo da


jurisprudência. Por outro lado, a

função

que o princípio teve no juízo e na argumentação


do Tribunal foi sendo, também ela, muito diversa, de caso para caso. Em geral, o


Tribunal tendeu a empregar o princípio como critério

indirecto

de juízo nos domínios


do direito penal e do direito processual penal; e como fundamento

directo

das decisões


nas outras duas situações. No entanto, note-se, a afirmação é apenas tendencial: a


riqueza e a variedade dos casos não permitem aqui asserções gerais. Passaremos de


seguida à análise de alguns desses casos; antes de prosseguir, porém, uma última nota


importa sublinhar.


7


4. O sistema de controlo da constitucionalidade das normas apresenta, em direito


português, traços estruturais que o diferenciam acentuadamente quer do modelo


espanhol quer do modelo italiano. Em Portugal existem verdadeiros e próprios


«recursos de constitucionalidade» - que aliás preenchem maioritariamente a actividade


quotidiana do Tribunal - e que têm funcionado praticamente como sucedâneos dos


«recursos de amparo» espanhóis ou das

Verfassungsbeschwerde

alemãs. Os recursos


são interpostos (nos termos do art. 280º da Constituição) ou de sentenças de tribunais


comuns que recusem a aplicação de uma norma com fundamento na sua


inconstitucionalidade, ou de sentenças [dos mesmos tribunais] que apliquem norma cuja


inconstitucionalidade tenha sido, incidentalmente, arguida durante o processo. Nesta


segunda hipótese o recurso deve ser interposto apenas pela

parte

que arguiu, sem êxito,


o incidente de inconstitucionalidade, e o Tribunal Constitucional só conhece dele se


tiverem sido previamente esgotados todos os demais recursos ordinários que, no caso,


caibam da sentença recorrida. Na primeira hipótese o recurso é interposto


directamente


para o Tribunal Constitucional, sendo a interposição obrigatória para o Ministério


Público.


As decisões que o Tribunal profere nos recursos de constitucionalidade valem


apenas para o caso concreto. Quer isto dizer que, nos casos em que o Tribunal conceda


provimento ao recurso ou «acolha» a questão de inconstitucionalidade, os efeitos da sua


decisão não são aqueles próprios de uma sentença [de inconstitucionalidade] «com força


obrigatória geral». Como a decisão só tem incidência no processo que deu origem ao


recurso, o que decorre dos seus efeitos é tão somente «a baixa dos autos ao tribunal de


onde provieram, a fim de que este reforme ou mande reformar a decisão recorrida em


conformidade com o julgamento sobre a questão de inconstitucionalidade» (artigo 80º, 2


da Lei do Tribunal Constitucional, Lei nº 28/82).


Como atrás se disse, a actividade do Tribunal Constitucional português é


acentuadamente preenchida com o julgamento destes «recursos de constitucionalidade»


(que, remontam, no total, a cerca de 90% de todas as decisões). Significa isto que


muitos – na realidade quase todos - os casos que a seguir se referirão, e que constituem


o lastro da jurisprudência portuguesa sobre «dignidade da pessoa humana», foram


julgados neste contexto processual. Visto que

juízo
e modo de instauração do juízo

não


são nunca variáveis independentes, a recordação do contexto processual em que foram


formulados os «juízos» que de seguida se descrevem é importante: de algum modo, o


‘facto’ ajuda à sua melhor compreensão.


8


I


O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a ‘construção’ do


Direito Penal e do Direito Processual penal


5. Durante a década de ’80 – no primeiro decénio, portanto, de actividade do


Tribunal – o princípio da dignidade da pessoa humana foi sobretudo invocado como


‘instrumento’ de clarificação dos

princípios fundantes

(e ‘fundantes’de acordo com a


Constituição) do Direito Penal e do Direito Processual Penal.


Numa série de sentenças, que se iniciaram em 1984 e se vieram a prolongar,


com maior intensidade, pela primeira metade de ’90, o Tribunal foi dizendo que a


política criminal de um Estado de direito – fundado, justamente, na «ideia» ou «valor»


da dignidade da pessoa – não poderia deixar de ser uma

política

assente, antes do mais,


no

princípio da culpa; no

princípio da necessidade das penas e das medidas de


segurança;

no princípio da subsidiariedade da pena e no princípio da

humanidade.


Nenhum destes princípios tinha, enquanto tal, assento

escrito

no texto da


Constituição. No entanto, o Tribunal afirmou a sua existência a partir de uma


argumentação ancorada na ‘ideia’ de ‘Estado de direito material’ - que incluiria em si a


‘ideia’ da dignidade da pessoa. Vale a pena recordar um excerto em que, de modo


particularmente impressivo, é apresentada tal argumentação: «O direito penal, no Estado


de direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser responsável e livre – do homem


que, sendo responsável pelos seus actos, é capaz de se decidir pelo direito ou contra o


direito. Há-de ser, por isso, um direito penal ancorado na dignidade da pessoa humana,


que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível pena sem


culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa.

9

»


Por este excerto já se vê que a afirmação do

princípio da culpa

ocupou, nesta


‘constelação’ de sentenças, um lugar determinante. De algum modo, o Tribunal


afirmaria todos os restantes princípios de «política criminal» - os da

necessidade

e da


9


Acórdão nº 83/95, DR, IIª série, nº 137, 16/6/95, p. 6609. Note-se no entanto que a formulação é


iniciada num outro caso – o do Acórdão 349/91, loc. cit., p. 12 271 - onde se acrescentava «de um homem


responsável pelos seu actos e

responsável pelo estar com os outros

». Itálico aditado.


9


subsidiariedade

da pena e da humanidade

– a partir e por causa dele. E adoptaria para


ele a seguinte definição: «[A] pena funda-se na culpa do agente pela sua acção ou


omissão, isto é, num juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade


com o dever jurídico embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo».


A definição consta do Acórdão nº 548/2001

10

. Neste caso, julgava-se uma norma


constante do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, que previa para os


casos de crime de abuso de confiança fiscal um limite

mínimo

de pena de multa


equivalente ao valor da prestação em falta. O recorrente (no caso o Ministério Público)


perguntara ao Tribunal se não seria inconstitucional a fixação de um tal limite


mínimo


para a multa, por poder ele vir a exceder a medida da culpa concreta do agente e, do


mesmo passo, ignorar a sua específica condição económica. O Tribunal respondeu


negativamente à pergunta. Mas só o fez depois de ter considerado que a fixação de tal


limite mínimo não contradizia todas as exigências decorrentes do


princípio da culpa,


pois que – disse - « [este] princípio significa que não há pena sem culpa, excluindo-se


toda a responsabilidade penal objectiva, nem medida da pena que exceda a culpa.

11

»


Em muitos outros casos, porém, o Tribunal viria a emitir – ainda com


fundamento nas exigências decorrentes do

princípio da culpa

– juízos de


inconstitucionalidade.


Foi o que sucedeu, desde logo, no Acórdão nº 16/84

12

. Neste caso julgava-se


uma norma constante do Código de Justiça Militar, que previa, como


efeito necessário


da pena


cominada pela prática de certos crimes graves, a sanção da demissão. Face ao


disposto no nº 4 do artigo 30º da Constituição – que diz, textualmente, «nenhuma pena


envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou


políticos» - o Tribunal não podia deixar de se decidir pela inconstitucionalidade. Mas a


fundamentação da sentença teve

outro

alcance: aí se deixou claro que o referido nº 4 do


artigo 30 da Constituição «deriva[va]» dos princípios definidores do Estado de direito, o


primeiro dos quais o princípio da dignidade da pessoa humana; que de tais princípios


decorria o

princípio da culpa;

e que tudo isso implicava a inadmissibilidade da


associação às penas de quaisquer efeitos estigmatizantes que viessem a impedir a


readaptação social dos delinquentes: «Ora, se da aplicação da pena resultasse, como


efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia


10


DR, IIº série, nº 161, 15/7/2001, p. 12 640. (A definição, contudo, já era constante na doutrina).


11


Idem, ibidem.


12


DR, IIº série, nº 110, 12/5/84, pp. 4254-6.


10


tábua rasa daqueles princípios, figurando o condenado como um proscrito, o que


constituiria flagrante atentado contra o princípio da dignidade da pessoa humana.»


13


Por outro lado, no Acórdão nº 95/2001

14

, em que se julgava uma norma anterior


à Constituição que estabelecia uma

pena fixa

para o crime de pesca proibida, o Tribunal


disse que

um direito penal de culpa

seria sempre incompatível com a existência de


quaisquer penas fixas, cominadas por que crimes fossem. É que, sendo a

culpa

princípio


fundante da pena e também seu limite, seria sempre em função daquela (sem excluir,


obviamente, exigências de prevenção) que, em cada caso, se deveria encontrar a


medida


concreta


da pena, situada entre o mínimo e o máximo previstos na lei para o


comportamento em causa.


Nos fundamentos desta decisão de inconstitucionalidade – que seria repetida,


como

decisão concreta (v. supra,

4), ainda nos casos dos Acórdãos nºs 70/2002,


22/2003, 163/2004

15

- o Tribunal voltou aliás a utilizar toda a argumentação já fixada


desde 1984, segundo a qual o princípio da culpa valeria, num Estado de direito fundado


no «ideia» da dignidade da pessoa humana, como princípio estruturante de qualquer


política criminal. Nos termos do art. 281º, nº 3, da Constituição, toda esta série de


decisões culminou com a emissão de uma sentença de inconstitucionalidade «com força


obrigatória geral» (Acórdão nº 124/2004

16

).


Noutras situações – como as dos Acórdãos nºs 426/91

17 e 527/9518

- o Tribunal


ocupou-se essencialmente dos princípios da

necessidade e da subsidiariedade

das


penas. Disse então que, como derivava da ‘essencial dignidade’ da pessoa o ‘facto’ de,


em caso algum, poder vir ela a ser

usada pelo Estado

como um simples meio para a


prossecução de fins preventivos,


claramente proibidas se tornavam todas as


incriminações de condutas que não tivessem «qualquer ressonância ética». E


acrescentou: num «direito penal de justiça», assente no princípio da dignidade da


pessoa, toda a pena tem que ser

necessária e subsidiária,

isto é, só devem ter dignidade


13

Ibidem,

p. 4255. Semelhante argumento – segundo o qual o princípio da culpa, decorrente do «valor»


da dignidade, estaria inevitavelmente associado à necessidade de ressocialização dos delinquentes – volta


a surgir no Acórdão nº 43/86 (DR, IIª série, nº 111, 15/5/86, pp. 4649-51), em que se discutiu, sem juízo


de inconstitucionalidade, a aplicação de penas relativamente indeterminadas aos ‘delinquentes por


tendência’, como os ‘alcoólicos e equiparados’.


14


DR, IIª série, 24/4/2002, pp. 7629-32


15


Pelo teor repetitivo destes Acórdãos (que se limitam a reproduzir o essencial do que fora dito antes, no


Acórdão 95/2001) limito-me a indicar o sítio da Internet em que estão disponíveis:


www.tribunalconstitucional,pt


16


DR, Iº série – A, nº 77, 31/3/2004, p. 2035-7.


17


DR, IIº série, nº 78, 2/4/92, pp. 3112 (21-5)


18


DR, IIº série, nº 260, 10/11/95, pp. 6881-4.


11


penal aqueles bens jurídicos comunitários cuja violação atinja aspectos essenciais da


vida em sociedade (princípio da necessidade); as sanções penais devem ser sempre o


último recurso das medidas legislativas para a protecção e defesa de bens jurídicos


(princípio da subsidiariedade)

19

.


Importantes foram também – por terem sido expressão do


princípio da


humanidade -

os casos dos Acórdãos nºs 474/9520 e 417/9521

.


No Acórdão nº 474/95 discutiu-se o pedido de extradição, apresentado pelos


Estados Unidos da América, de um cidadão brasileiro que se encontrava em Portugal,


para que este fosse julgado pelos tribunais norte-americanos por crime ao qual, de


acordo com o direito do Estado requisitante, correspondia a pena de prisão perpétua. O


Tribunal entendeu que a Constituição

proibia

nessas circunstâncias a extradição. E fê-lo


com fundamentos lapidares: «Tendo sido a prisão perpétua abolida em Portugal há mais


de cem anos, pela lei de 4 de Junho de 1884, encontra-se a mesma proscrita pela


Constituição da República em virtude de a sua aplicação repugnar à consciência jurídica


que enforma o nosso ordenamento, tendo em conta a


prevalência da dignidade


humana»

22

. Por seu turno, no caso do Acórdão nº 417/95 discutiu-se a extradição,


solicitada pelo Governo da República Popular da China, de um cidadão chinês que se


encontrava no território de Macau. Neste caso, e de acordo com o direito do Estado


requisitante, ao crime imputado ao referido cidadão correspondia a pena de morte. O


Tribunal – a partir da leitura do nº 2 do artigo 24º e do (então nº 3: hoje nº 6) do artigo


33º da Constituição – entendeu que

em caso algum

poderia a ordem constitucional


portuguesa aceitar, nessas circunstâncias, a extradição; e desenvolveu a propósito uma


argumentação que coenvolvia o

princípio da dignidade da pessoa humana e os

fins das


penas:


«A proibição de aplicação da pena de morte, à luz do artigo 24º, nº 2, representa


(…) o limite extremo que o Estado Português nunca pode transpor. [. ] É que, se para


alguns Estados a pena de morte continua a não ser considerada uma pena desumana e


degradante, para outros Estados , como é o caso de Portugal, ela foi abolida do leque


19


Veja-se sobretudo, quanto à definição destes princípios, o Acórdão nº 527/95 (loc. cit., p. 6884). Neste


caso julgava-se uma norma, anterior à Constituição, que punia criminalmente como

desertor

o tripulante


da marinha mercante que, sem desempenhar funções directamente relacionadas com a manutenção,


segurança ou equipagem do navio, o deixava partir para o alto-mar sem embarcar.


20


DR, IIª série, nº 266, 17/11/95, pp. 13 792-4


21


DR, IIª série, nº 266, 17/11/95, pp. 13 787-92


22

Loc. cit.,

p. 13 794. Note-se que orientação do Tribunal viria mais tarde a ser vertida em norma


constitucional escrita por meio de revisão constitucional (veja-se hoje o nº 4 do artigo 33º da


Constituição)


12


das penas (..) o que se compreende (…) pois a vida humana é inviolável, como se vè


consagrado no artigo 24º nº 1 da Constituição (…), e isso tem a ver com a ‘dignidade da


pessoa humana’ (.) É esta ‘’dignidade da pessoa humana’ que repudia a aplicação pelo


Estado da pena capital, a par de razões humanitárias, para se atingirem os fins de


prevenção geral e especial que acompanham o direito criminal.»


23


6. Durante o mesmo período de tempo em que se foram identificando os


princípios constitucionais definidores de um «direito penal de justiça», na sua dimensão


substantiva, algumas sentenças houve incidiram também sobre o direito adjectivo. Vale


a pena sublinhar, entre várias, duas: a proferida no caso do Acórdão nº 394/89

24

e a


proferida no caso do Acórdão nº 474/94

25

.


No primeiro caso julgou-se a norma do Código de Justiça Militar que


permitia


que se realizasse o julgamento na ausência do réu.


O Tribunal decidiu-se pela


inconstitucionalidade, invocando sobretudo o princípio do

fair trial.

Um ‘processo leal’,


disse, não poderia nunca permitir que se realizassem julgamentos sem a presença do


réu, pois que tal violaria as ‘garantias de defesa’ do arguido em processo criminal


(artigo 32º nº 1 da Constituição), o princípio do contraditório (artigo 32º, nº 5) e o


princípio da verdade material e da imediação. Mas sublinhou: « [todos esses princípios]


vão ínsitos na própria ideia de processo criminal de um Estado de direito como


exigências fundamentais que são do princípio do respeito pela dignidade humana» que


«há-de considerar-se como limite de toda a apreciação das coisas criminais.»

26

No


segundo caso discutiu-se a interpretação do nº 5 do artigo 32º da Constituição, que diz


que, em processo penal, «o princípio do contraditório» se aplica à


audiência de


julgamento

e actos instrutórios que a lei determinar.

Pedia-se aqui que fosse o Tribunal


a identificar que actos instrutórios seriam esses, que, de acordo com a Constituição,


deveriam estar ‘subordinados’ ao princípio do contraditório. O Tribunal não o fez, pois


que – disse – se tratava de matéria incluída na liberdade de conformação política do


legislador ordinário. Mas deixou claro que tal liberdade tinha como limite e como


critério orientador o

princípio da dignidade da pessoa humana:

«não poderá o


23


Loc. cit., p. 13 790


24


DR, IIº série, nº 212, 14/9/89, pp. 9187-90


25


DR, IIº série, nº 258, 8/11/94, pp. 11 270-2.


26

Loc. cit.,

p. 9189


13


legislador deixar de ter presente que, em processo criminal, o arguido tem de ser sempre


respeitado na sua dignidade de pessoa.»


27


III


O Princípio da Dignidade Da Pessoa Humana e a ‘descoberta’ de


Direitos Fundamentais não escritos


(


Em especial, o ‘direito a um mínimo de sobrevivência condigna’)


7. É vasto o catálogo de direitos fundamentais que se encontra inscrito na Parte I


da Constituição portuguesa. Na verdade, o elenco compreende não apenas as chamadas


‘liberdades clássicas’, ou de ‘primeira e segunda geração’ – onde se incluem os direitos


de liberdade pessoal e os direitos de participação política, como

direitos de defesa –

mas


também os ‘direitos sociais’, como direitos a prestações. A Constituição deixa claro (no


artigo 18º, nº 1) que só os

direitos de defesa

são directamente aplicáveis. No entanto,


tem entendido a doutrina (secundada por alguma jurisprudência de que agora não


cuidaremos) que nem por isso devem deixar os

direitos sociais

de ter uma certa


‘efectividade’.


Contudo, e apesar deste vasto elenco, o princípio da dignidade da pessoa


humana tem sido

operativo

enquanto instrumento auxiliar da ‘descoberta’ de direitos


fundamentais não escritos.


Tal ocorreu, desde logo, no caso do Acórdão nº 130/88

28

. Neste caso discutia-se


se a norma legal que regulava os procedimentos a seguir em situações de colheita de


órgãos de pessoa falecida assegurava,

de modo suficiente,

o apuramento da vontade do


falecido a respeito da colheita. O Provedor de Justiça entendia que não, e por isso


solicitou ao Tribunal a declaração de inconstitucionalidade – com «força obrigatória


geral» - da referida norma, por violação dos direitos à integridade pessoal (artigo 25º),


dos demais direitos pessoais (artigo 26º) e, ainda que ‘reflexamente’, do direito à


liberdade de consciência (artigo 41º). O Tribunal não lhe deu razão, por entender que os


27


Loc. cit., p. 11 272


28


DR, IIª série, nº 205, 5/9/88, pp. 8101-8.


14


procedimentos legalmente previstos eram de natureza a garantir um conhecimento


suficiente


da vontade do falecido quanto à eventual colheita dos seus órgãos. Mas nem


por isso deixou de enunciar, com fundamento directo no princípio da dignidade da


pessoa humana – entendido como eixo em torno do qual giraria a «cultura


constitucional» do Estado de direito

29

- o «direito à disposição do próprio cadáver»


enquanto direito fundamental

implícito ou

não escrito.


O ‘direito geral de personalidade’ – entendido como


liberdade geral de actuação


foi o outro direito implícito,

ou não escrito, cuja existência o Tribunal ‘deduziu’ da


ideia de dignidade contida no artigo 1º. O caso – que foi decidido pelo Acórdão nº 6/84,


já por nós referido (cfr.

supra, 2) – tornou-se de algum modo desinteressante:

com a


revisão constitucional de 1997 o direito que, em 84, o Tribunal considerara


existente


mas

não escrito

passou a ter assento constitucional expresso. Hoje, no artigo 26º, a


Constituição portuguesa reconhece (à semelhança da alemã e da espanhola) a


liberdade


geral de actuação


enquanto direito ao livre desenvolvimento da personalidade.


Contudo, e como a jurisprudência parece, também aqui, ter antecedido e inspirado o


legislador de revisão, vale ainda a pena recordar a circunstância em que se admitiu a


existência desse direito (então)


implícito.


No Acórdão nº 6/84

30

julgou-se, através de um recurso de constitucionalidade,


uma norma (legal) do regulamento de transportes públicos de passageiros que impunha,


a quem prestasse serviço nos referidos transportes, o cumprimento de certas regras de


apresentação pessoal. O recorrente veio perguntar ao Tribunal se tal imposição não


violaria o «direito à imagem» , consagrado no artigo 26º da Constituição. O Tribunal


entendeu que não, por considerar – através de um raciocínio de ponderação de bens que


não importa agora reproduzir – que estavam, no caso, preenchidos os requisitos


constitucionais que tornavam legítima a restrição ao direito fundamental. Mas - e é esse


o ponto que interessa sublinhar – entendeu também que tal direito fundamental,


potencialmente lesado, não seria aquele invocado pelo recorrente mas um outro, a saber,


«o direito geral de personalidade» entendido nos termos acima definidos. A


fundamentação (p. 3947) radicou-se

tão somente

no artigo 1º, por ele consagrar, como


«base» da República, o princípio da dignidade da pessoa humana.


29


Loc cit., p. 8107


30


DR, IIª série, nº 101, 2/5/84, pp. 3947-8.


15


8. Estes dois casos que se acabaram de resumir foram – pode dizer-se – casos


‘pontuais’, que não tiveram seguimento em jurisprudência posterior. No primeiro, tinha


escassa amplitude prática o problema resolvido pelo Tribunal. No segundo, o legislador


de revisão optou por consagrar, em texto escrito, a solução antes achada pela


jurisprudência. De modo que, em ambas as situações, teve fraca ressonância o ‘facto’ de


o Tribunal ter afirmado a existência de direitos fundamentais

implícitos,
ou

não


escritos,

com fundamento apenas

no princípio da dignidade da pessoa humana.


Já não assim com a afirmação do


direito ao mínimo de sobrevivência condigna,


ou, simplesmente, do

direito ao mínimo de sobrevivência,

como por vezes também lhe


chama o Tribunal.


A jurisprudência que afirmou a existência deste direito – que na verdade não


consta

enquanto tal

do catálogo, vasto, de direitos que forma a Parte I da Constituição –


teve um desenvolvimento gradual.


Iniciou-a o Acórdão nº 232/91

31

. Em causa estava uma norma (aliás, anterior à


Constituição) que impunha um

aumento automático

para os montantes de pensões


devidas por acidentes de trabalho. O recorrente (pois que, mais uma vez, de um recurso


de constitucionalidade se tratava) alegava a inconstitucionalidade de tal norma com


fundamento na sua eficácia ‘retrospectiva’: os encargos por ela impostos às seguradoras


seriam tais que lesavam o princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do


Estado de direito. O Tribunal não pôs em causa a natureza ‘retrospectiva’ da norma;


mas concluiu que a retrospectividade se justificava pelo «maior peso» ou «relevo»


constitucional que tinha, no caso, o interesse público que a dita norma prosseguia. E


disse: «O princípio do Estado de direito postula a ideia de que as leis sejam instrumento


de realização do bem comum, entendido este sempre na perspectiva fundamental do


respeito incondicional pela dignidade da pessoa humana (.) Sendo este o


sentido


fundamental do princípio do Estado de direito,


logo se vê que uma norma como a que


aqui está em causa (…) serve uma das finalidades que a esse princípio se assinalam. Em


face de situações tão dramáticas, como eram as de alguns pensionistas, que foram vendo


as suas pensões degradar-se, algumas delas até ao ponto de já não representarem quase


nada para a sua sobrevivência, impunha-se, de facto, promover a sua actualização.


Não


pode , na verdade, esquecer-se que o respeito incondicionado pela dignidade da pessoa


humana exige, antes do mais, a garantia de um mínimo de sobrevivência.».


(p. 9310:


31


DR, IIª série, nº 214, 17/9/91, pp. 9309-11.


16


último itálico aditado). Com fundamento neste «maior peso» dado à


garantia de um


mínimo de sobrevivência


- «maior», note-se, em relação às exigências eventualmente


decorrentes da tutela da confiança – o Tribunal recusou dar provimento ao recurso e


concluiu pela não inconstitucionalidade da norma.


Seguiram-se depois várias sentenças que incidiram sobre a norma do Código de


Processo Civil (contida no artigo 824º) que permitia a

penhora até um terço

de


rendimentos provenientes de salários e pensões,


qualquer que fosse o seu montante.


Nestes casos – que foram, entre outros e com

nuances

diferenciadoras que não


vale a pena aqui sublinhar, os dos Acórdãos nºs 349/91

32, 411/9333,130/9534, 62/200235

-


o Tribunal voltou a afirmar (sempre a partir do princípio da dignidade da pessoa


humana) a existência de um

direito, ou de uma garantia,

«ao mínimo de sobrevivência


condigna». E, tal como já o fizera no caso acima relatado sobre o aumento automático


das pensões por acidentes de trabalho, voltou a entender que tal

direito ou

garantia


detinha «maior peso» no juízo de ponderação a que procedia. Só que, aqui, o outro


‘bem’ a ponderar já não era – como no caso anterior – a protecção da confiança, mas o


próprio

direito dos credores ao ressarcimento do crédito

. O Tribunal não deixou de


reconhecer tutela constitucional a este último direito, nos termos da garantia


jusfundamental da propriedade privada (artigo 62º da Constituição). Só que entendeu


que,


nos casos em que o rendimento a penhorar não fosse superior ao salário mínimo,


tal direito dos credores deveria ‘ceder’ perante o

direito ao mínimo de sobrevivência,

de


forma a garantir a impenhorabilidade total dos salários e pensões. Aliás, toda esta série


de decisões «concretas» viria a culminar numa declaração de inconstitucionalidade,


«com força obrigatória geral», da referida norma do Código de Processo Civil. Vale a


pena reproduzir a fórmula decisória desta última sentença, proferida no Acórdão nº


177/2002

36

: «O Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com


força obrigatória geral, da norma que resulta (…) do artigo 824º do Código de Processo


Civil, na parte em que permite a penhora até um terço das prestações periódicas, pagas


ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a


dívida exequenda, a título de regalia e social ou de pensão, cujo valor global não seja


32


DR, IIª série, nº 277, 2/12/91, pp. 12 270-4


33


DR, IIª série, nº 15, 19/1/94, pp. 512-3


34


DR, IIº série, nº 96, 24/4/95, pp. 4454


35


DR, IIª série, nº 59, 11/3/2002


36


DR, Iª Série –A, nº 150, 2/7/2002, pp. 5158-63.


17


superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade da pessoa


humana, contido no princípio do Estado de direito (…)

37

»


9. Tanto no caso do aumento automático das pensões quanto no caso da


impenhorabilidade de rendimentos não superiores ao salário mínimo o Tribunal só


afirmou a

vertente negativa

do «direito à sobrevivência»: só disse que existia, como


relevo jusfundamental, um


direito a não ser privado de um mínimo necessário à


sobrevivência.


Foi, com efeito, essa

vertente negativa

do direito que fundamentou o juízo de


ponderação de bens que, em ambas as situações, o Tribunal adoptou. O que se opôs às


expectativas das seguradoras e aos direitos dos credores não foi um «direito positivo»


ao mínimo de sobrevivência, pois que tal direito – com essa estrutura positiva – só é


pensável enquanto direito oponível à própria comunidade política estadual e enquanto


direito realizado através de prestações a cargo desta última. O que se opôs nos dois


casos aos outros «bens» ou «interesses» dotados de menor «peso» ou «relevo» foi


portanto, e apenas,

o direito a não se ser privado do indispensável

a uma «vida


condigna».


Contudo, e num caso mais recente, o Tribunal deu um passo assinalável,


reconhecendo também a existência de um direito constitucional

positivo

– no sentido


atrás definido – ao mínimo de sobrevivência. A sentença fundamentou-se uma vez


mais, e de modo essencial, no princípio da dignidade da pessoa humana.


No Acórdão nº 509/2002

38

discutiu-se uma norma do regime legal que regula os


termos de atribuição, por parte do Estado, do chamado ‘rendimento social de inserção’,


antes designado por ‘rendimento mínimo garantido’ – um sistema de subvenções


financeiras estaduais destinadas a auxiliar quem, de forma provada, se encontre em


situação de pobreza e não tenha quaisquer outros meios de subsistência. Em 2002 o


Parlamento resolveu alterar tal sistema – introduzido pela primeira vez em Portugal nos


finais da década de ’90 – de modo a que ficassem

sempre

excluídos das subvenções


estatais os jovens de idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos de idade

39

. Segundo


o preâmbulo do decreto da Assembleia, a exclusão justificava-se pela finalidade


essencial que devia prosseguir a política pública de concessão dos referidos


37

Ibidem.

p. 5162.


38


DR, Iª série –A, nº 36, 12/2/2003, pp. 905-17.


39


Desde que (artigo 4º do decreto da Parlamento): (i) não tivessem menores a cargo; (ii) não fossem


mulheres grávidas; (iii) não fossem casados – ou vivendo em união de facto - há mais de um ano.


18


rendimentos, que deveriam ser destinados a garantir a ‘ajuda para a auto-ajuda’ e não a


desincentivar a entrada dos jovens no mercado de trabalho.


O Presidente da República entendeu que era inconstitucional a norma que


permitia a exclusão dos jovens do universo dos destinatários da subvenção estadual,


alegando,

inter alia,

que tal exclusão violava os princípios constitucionais da igualdade


e da «proibição do retrocesso social». E assim – nos termos do artigo 278º da


Constituição –, antes de promulgar o diploma, pediu que o Tribunal Constitucional se


pronunciasse sobre a questão.


O Tribunal veio a dar razão ao pedido, decidindo-se pela inconstitucionalidade


da norma e impedindo, portanto, a sua promulgação e entrada em vigor. Só que a


decisão foi tomada, não com base nos fundamentos apresentados pelo Presidente – que,


recorde-se, alegava violação dos princípios da igualdade e da «proibição do retrocesso


social» -, mas com base nas sentenças anteriores do Tribunal relativas ao


direito ao


mínimo de subsistência.


Entendeu-se aqui que a exclusão sistemática, do universo dos


destinatários das subvenções estatais, dos jovens de idade compreendida entre os 18 e


25 anos lesava o


conteúdo mínimo do direito a um mínimo de existência condigna –


direito esse constitucionalmente garantido – dado não «[existirem] outros instrumentos


que o possam assegurar, com um mínimo de eficácia jurídica.

40

»


Note-se que a sentença reconheceu o ‘salto qualitativo’ que, face à


jurisprudência anterior, ela própria efectuava, ao conferir esta nova dimensão, positiva,


ao direito ao mínimo de subsistência: «Importa (…) distinguir entre o reconhecimento


de um direito a não ser privado do que se considera

essencial

à conservação de um


rendimento indispensável a uma existência minimamente condigna, como aconteceu nos


referidos arestos, e um direito a

exigir do Estado esse

mínimo de existência condigna,


designadamente através de prestações (…)»

41

. Mas o «salto’ aparece justificado do


seguinte modo:


« A jurisprudência do Tribunal Constitucional, no entanto, deduziu do artigo 1º


da Lei Fundamental, que garante a dignidade do homem,

um direito subjectivo

aos


meios necessários à existência do indivíduo (.) [O]


princípio de defesa das condições


mínimas de existência


pode fundar uma ‘imediata pretensão dos cidadãos’, ‘nos casos


de particulares situações sociais de necessidade’ (.) [O] legislador goza da margem de


autonomia necessária para escolher os

instrumentos adequados para garantir o

direito a


40


Loc. cit. p. 912.


41


Loc. cit., p. 913.


19


um mínimo de existência condigna,


podendo modelá-los em função das circunstâncias e


dos seus critérios políticos próprios. Assim,

in casu,

podia perfeitamente considerar que,


no que se refere aos jovens, não deveria ser escolhida a via do subsídio –


designadamente a do alargamento do âmbito de aplicação do


rendimento social de


inserção –,


mas antes a de outras prestações, pecuniárias ou em espécie (.) Pressuposto


é, porém, que as suas escolhas assegurem, com um mínimo de eficácia jurídica, a


garantia de um

mínimo de existência condigna, para todos os casos.»

42


10. Apenas um apontamento final, quanto a toda esta jurisprudência que veio a


reconhecer a existência do direito fundamental (

implícito

) a um «mínimo de


subsistência condigna».


A razão essencial das decisões tomadas encontra-se, toda ela, no artigo 1º da


Constituição. O direito ao mínimo de existência foi reconhecido como direito


fundamental

a partir e por causa

do princípio da dignidade humana, fundamento último


do juízo do Tribunal: basta aliás ler todas as fórmulas decisórias das sentenças atrás


citadas para o confirmar.


No entanto, as mesmas fórmulas não deixam de fazer ‘alusão’ ao artigo 63º da


Constituição, que consagra o direito («social») à «segurança social e solidariedade». Por


via de regra, a ‘alusão’ ocupa um lugar secundário. O que normalmente se diz é que a


inconstitucionalidade [nos casos em que, evidentemente, ela tenha sido acolhida] radica


na «violação do direito a um mínimo de existência condigna inerente ao princípio do


respeito da dignidade humana, princípio esse decorrente das disposições conjugadas dos


artigos 1º, 2º, 63º nºs 1 e 3º da Constituição da República Portuguesa.»


43


Perguntar-se-á assim por que razão, dispondo o texto da Constituição portuguesa


de um tão vasto leque de direitos – e incluindo ele, expressamente, um ‘direito à


segurança social e à solidariedade’ –, se viu o juiz constitucional português impelido a


fundamentar a existência do direito

não escrito

ao mínimo de sobrevivência a partir de


um princípio tão «aberto» quanto o princípio da dignidade da pessoa humana.


Sobretudo, quando se tem em conta que o Tribunal foi sempre sensível a essa mesma


«abertura», adoptando – como vimos (

supra,

2) – uma atitude ‘prudente’ e


‘parcimoniosa’ quer quanto à definição do conteúdo do princípio quer quanto ao alcance


42


Loc. cit., p. 913-4.


43


Texto da decisão tomada no Acórdão nº 509/2002. Loc. cit., p. 914. Mas leia-se também o texto da


decisão no Acórdão nº 177/2002 (DR, Iª série-A, nº 150, 2/7/2002, p. 5162.)


20


do seu valor prescritivo. Não há dúvida que a parcimónia parou aqui, em matéria de


fundamentação da existência do

direito ao mínimo de sobrevivência.

Pelo menos no que


diz respeito ao «alcance prescritivo» do princípio contido no artigo 1º, seguramente que


toda esta jurisprudência, que acabámos de descrever, considerou que o princípio detinha


um «alcance prescritivo» máximo.


O Tribunal teve consciência do facto e justifico-o por diversas vezes. Com


efeito, no Acórdão nº 349/91 – repetido, nesta parte, em inúmeras outras ocasiões –


disse: « Este preceito constitucional [o contido no artigo 63º] poderá, desde logo, ser


interpretado como garantindo a todo o cidadão a percepção de uma prestação


proveniente do sistema de segurança social que lhe possibilite uma


subsistência


condigna

em todas as situações de doença, velhice ou outras semelhantes. Mas,

ainda


que não possa ver-se garantido no artigo 63º da Lei Fundamental um direito ao mínimo


de sobrevivência,


é seguro que este direito há-de extrair-se do princípio da dignidade da


pessoa humana, contido no artigo 1º da Constituição.»

44

(Itálico nosso). Ou seja: a


jurisprudência entendeu que o âmbito de protecção normativa do direito previsto à


segurança social e à solidariedade era por demais restrito – por respeitar apenas a


situações de ‘doença, velhice ou outras semelhantes’ – para que nele se pudesse ler,


também, a protecção, mais ampla, de


um direito ao mínimo de subsistência.


III


Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e Delimitação de Direitos


11. Finalmente, A «ideia» da dignidade da pessoa humana foi ainda


operativa


enquanto instrumento auxiliar de delimitação do conteúdo de diferentes direitos.


No caso do Acórdão nº 144/2004

45

(repetido nos Acórdãos nºs 196/2004 e


303/2004

46) discutiu-se a norma do Código Penal que incrimina o lenocínio

(artigo170,


nº1). O recorrente vinha perguntar ao Tribunal se não seria inconstitucional tal


incriminação, por violação da liberdade de consciência (artigo 41º da Constituição) e da


liberdade de escolha de profissão (artigo 47º).


44


DR, IIª série, nº 277, 2/12/91, p. 12 272.


45


DR, IIª série, nº 92, 19/4/2004, p. 6082-5


46

Disponíveis no sítio da Internet

www.tribunalconstitucional.pt


21


Ao julgar o recurso, o Tribunal procedeu à delimitação do âmbito de protecção


normativa dos direitos contidos nos artigos 41º e 47º da Constituição. E concluiu que


nem no âmbito protegido pela «liberdade de consciência» nem no âmbito protegido pela


«liberdade de escolha de profissão» se poderia vir a albergar - como actividade


lícita,


não só juridicamente tolerada mas, mais do que isso,

constitucionalmente protegida –

a


actividade de quem, profissionalmente e com intenção lucrativa, favoreça ou facilite a


prostituição de outrem. O critério interpretativo utilizado radicou, sobretudo, na «ideia»


de dignidade contida no artigo 1º, ideia essa definida, afinal de contas, a partir da


«fórmula do objecto» proposta por Gunter Dürig (

supra,

2): «Tal perspectiva [de


criminalização do lenocínio] não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento


de que uma ordem jurídica orientada pelos valores de justiça e assente na dignidade da


pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão da liberdade


de acção, situações e actividades cujo ‘princípio’ seja o de que uma pessoa, numa


qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada


como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impede desde logo o


artigo 1º da Constituição, ao fundar a República na igual dignidade da pessoa


humana.»


47


47


Loc. cit., p. 6084


22


Índice de Acórdãos do Tribunal Constitucional


·


Acórdão nº 6/84


Acórdão nº 16/84


Acórdão nº 43/86


Acórdão nº 130/88


Acórdão nº 105/90


Acórdão nº 394/89


Acórdão nº 426/91


Acórdão nº 323/91


Acórdão nº 349/91


Acórdão nº 411/93


Acórdão nº 474/94


Acórdão nº 130/95


Acórdão nº 474/95


Acórdão nº 417/95


Acórdão nº 527/95


Acórdão nº 95/2001


Acórdão nº 548/2001


Acórdão nº 62/2002


Acórdão nº 177/2002


Acórdão nº 509/2002


Acórdão nº 124/2004


Acórdão nº 144/2004


Acórdão nº 196/2004


Acórdão nº 303/2004


·


Todas as sentenças posteriores a 1989 estão disponíveis no sítio da Internet


www.tribunalconstitucional.pt