domingo, 18 de março de 2012

REGULAÇÃO E LIMITES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

REGULAÇÃO E LIMITES DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Jorge Bacelar Gouveia
“Intervenção do poder público normativo sobre a positivação constitucional dos direitos fundamentais, ora com a finalidade de delimitar (regulação), ora com o objectivo de comprimir (limites), os respectivos alcance e exercício, por força da ponderação de outros valores ou princípios considerados pertinentes”.
I
A REGULAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
1. Conceito e modalidades
No Direito Constitucional Português, a categoria dos direitos fundamentais, do ponto de vistas da sua localização sistemática no
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ordenamento jurídico1, em grande medida se esteia na respectiva consagração no texto constitucional, que representa assim a sua fonte primacial.
Mas, como a dogmática dos direitos fundamentais tem recentemente mostrado, não se apresenta muitas vezes suficiente uma única intervenção desse texto normativo na sua qualidade de fonte constitucional, que tem o desiderato de tornar tais direitos plenamente operativos.
É que importa que os termos da consagração dos direitos fundamentais sejam alvo de intervenção normativa posterior, dita de regulação dos mesmos, podendo assumir uma destas duas possíveis configurações2:
1 Sobre o sistema constitucional português de direitos fundamentais, v., de entre outros, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 75 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 93 e ss., e Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 101 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, Lisboa, 1995, pp. 293 e ss., e O estado de excepção no Direito Constitucional – entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, I, Coimbra, 1998, pp. 836 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra, 1999, pp. 369 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, IV, 3ª ed., Coimbra, 2000, pp. 137 e ss.
2 Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., pp. 224 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos..., pp. 142 e 143; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, pp. 445 e 446; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito..., pp. 1140 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, p. 330.
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- Regulamentação de direitos fundamentais – quando a intervenção normativa, sendo útil no esclarecimento da sua estrutura e na disciplina do respectivo exercício, não se assume como sendo necessária;
- Concretização de direitos fundamentais – quando a intervenção normativa, sendo já indispensável para dar exequibilidade aos direitos, permite o respectivo exercício, bem como a delimitação dos seus contornos, num eventual conflito com outros direitos.
A regulação dos direitos fundamentais pode ser vista sob diversas perspectivas funcionais, que lhe dão assim um largo campo de utilidade prática:
- para esclarecer e aclarar o conteúdo e o objecto dos direitos fundamentais;
- para acomodar o respectivo exercício, tornando-o efectivo ou mais fácil;
- para prevenir situações de abuso de exercício, estabelecendo os seus limites internos;
- para evitar situações de colisão com outros direitos contíguos, traçando, segundo o princípio da concordância prática, as fronteiras entre eles.
2. A via do poder constitucional
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Em alguns, poucos, casos, a regulação dos direitos fundamentais fica a cargo do próprio texto constitucional, que simultaneamente que os positiva logo se encarrega de estabelecer a respectiva especificação. Não é muito frequente, mas é uma possibilidade que, pontualmente, se encontra estabelecida.
O caso mais paradigmático é o da liberdade de reunião: o texto constitucional, não se limitando a positivar o direito, vai mais além na consagração dos respectivos contornos – dizendo que a reunião se entende como sendo “pacífica e sem armas” – e também na explicitação de o respectivo exercício ser livre – não dependendo o mesmo de “autorização” das autoridades públicas3.
Outros casos podemos também referir: no direito à integridade pessoal, na sua vertente física, a especificação de que o mesmo não admite certas práticas, como a “tortura, os tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos”4; na liberdade religiosa, a especificação de que a mesma implica que “...Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa”5.
3. A via do poder legislativo
3 Art. 45º, nº 1, da Constituição.
4 Art. 25º, nº 2, da Constituição.
5 Art. 41º, nº 2, da Constituição.
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A intervenção normativo-constitucional nesta veste da regulação dos direitos fundamentais está longe, no entanto, de ser a regra, já que essa é a missão de que normalmente se desincumbe a lei infraconstitucional.
Simplesmente, dado que o sistema de actos legislativos não é monista, cumpre diferenciar entre as intervenções legislativas que se operam no plano das (i) leis reforçadas e as intervenções normativas que se realizam no âmbito dos (ii) actos legislativos comuns.
Porque o sistema português de actos legislativos é um sistema também parcialmente regionalizado, dada a existência de Regiões Autónomas dotadas de poder legislativo, considera-se ainda a partilha por estas deste poder de intervenção legislativa reguladora dos direitos fundamentais.
Para os direitos fundamentais que sejam direitos, liberdades e garantias, a resposta parece evidente no sentido de só ser admissível a lei formal proveniente de órgãos nacionais. Mas o mesmo também se deve concluir para os direitos económicos, sociais e culturais, porquanto esta matéria se deve implicitamente considerar como sendo uma matéria da República, assim excluída da órbita de acção do poder legislativo regional.
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a) Leis de valor reforçado
Dentro da constelação de actos legislativos, numa evidenciação que a revisão constitucional de 1997 veio acentuar, há alguns deles que, não deixando de se considerar como hierarquicamente pertencentes à lei ordinária, assumem uma especial força vinculativa de outros actos legislativos.
É aquilo a que a Constituição Portuguesa chama “leis de valor reforçado”, cuja categoria abrange, numa definição dogmaticamente discutível, três realidades distintas: as leis orgânicas, as leis aprovadas por dois terços e as leis cujo conteúdo se imponha a outras leis6.
A matéria da regulação dos direitos fundamentais sem qualquer dúvida que ocupa um lugar de relevo neste grupo de actos legislativos, em testemunho claro, aliás, da respectiva importância no contexto dos tipos de intervenção legislativa que se antolham possíveis.
Quanto às leis orgânicas, é de mencionar o facto de estas poderem respeitar aos direitos fundamentais se incidirem nas seguintes questões: o direito de sufrágio, nas eleições e nos referendos, o direito à cidadania portuguesa e a liberdade de associação e de partidos políticos.
6 Cfr. o art. 112º, nº 3, da Constituição.
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Quanto às leis que carecem de ser aprovadas por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, anote-se o caso da atribuição do direito de sufrágio aos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, para a eleição do Presidente da República7.
b) Leis ordinárias comuns
Nos restantes casos, não abrangidos pelas específicas intervenções que constitucionalmente se prevêem na categoria de leis de valor reforçado, verifica-se a adopção de um esquema dualista quanto ao tipo de intervenção legislativa reguladora dos direitos fundamentais, precisamente em razão da diferenciação entre os direitos, liberdades e garantias e os direitos económicos, sociais e culturais8.
Para os direitos, liberdades e garantias, estabelece-se uma reserva relativa de competência legislativa em favor da Assembleia da República: tudo quanto diga respeito à legiferação nesta matéria, por força da al. b) do nº 1 do art. 165º da Constituição, submete-se a este tipo de intervenção. Ela tem como característica
7 Cfr. o art. 121º, nº 2, da Constituição.
8 Cfr. JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, p. 444; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, pp. 376 e ss.
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a possibilidade de uma intervenção parlamentar, que pode, em todo o caso, ser delegável no Governo, mediante autorização legislativa.
Já quanto aos direitos económicos, sociais e culturais, a regra é outra e consiste na partilha da intervenção legislativa entre a Assembleia da República e o Governo: tanto aquela, através de lei, como este, por intermédio de decreto-lei, podem legiferar para essa categoria de direitos fundamentais9.
Este é um esquema que funciona, como refere JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, em termos de cláusula de autorização geral para uma intervenção legislativa reguladora dos direitos fundamentais10.
Quanto a certos direitos fundamentais, porém, o texto constitucional, do mesmo passo que os positiva, refere particularmente essa tarefa como estando a cargo do legislador:
- a lei que deve estabelecer as “...garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade da pessoa humana, de informações relativas às pessoas e famílias”11;
9 Não obstante esta divisão, é a própria Constituição Portuguesa que entende reiterar a mesma consequência da reserva relativa de competência legislativa parlamentar para alguns direitos, liberdades e garantias: o estado e a capacidade das pessoas, a expropriação por utilidade pública e as garantias dos administrados.
10 Os direitos fundamentais..., p. 228, nota nº 28.
11 Art. 26º, nº 2, da Constituição.
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- a lei que deve definir o “...conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização”12;
- a lei que deve regular “a adopção”, bem como os termos da respectiva tramitação célere13;
- a lei que deve garantir o “...direito de objecção de consciência”14.
Importa, todavia, equacionar a existência de regras particulares para alguns direitos fundamentais, que implicam da parte do texto constitucional um desvio relativamente àquelas duas traves-mestras da organização do poder legislativo na regulação dos direitos fundamentais, de acordo com o seguinte esquema, em que se podem incluir direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais:
a) Casos de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República para direitos, liberdades e garantias: é o que sucede com a liberdade de ensino – no que tenha de pertinente com as bases do sistema de ensino –, com o direito à liberdade física – no que possa relacionar-se com o regime das forças de segurança – ou
12 Art. 35º, nº 2, da Constituição.
13 Cfr. o art. 36º, nº 7, da Constituição.
14 Art. 41º, nº 6, da Constituição.
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ainda com o estatuto dos cargos públicos – a liberdade de exercício de cargos públicos;
b) Casos de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República para direitos económicos, sociais e culturais: bases do sistema da segurança social – no que concerne ao direito à segurança social; bases do serviço nacional de saúde – no que respeite ao direito à protecção da saúde; bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural – naquilo que seja pertinente ao direito ao ambiente e ao direito à cultura.
II
OS LIMITES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM GERAL
4. Os limites constitucionais explícitos
Não sendo a situação mais comum, a positivação constitucional da tipologia de direitos fundamentais é acompanhada, por vezes, da enunciação simultânea de limites de conteúdo e de objecto dos mesmos.
São hipóteses em que o legislador constitucional, em vez de deferir essa tarefa à lei, prefere logo estabelecer tais limites, quer
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por razões de técnica normativa, quer por razões de ordem política.
Pelo facto de não se tratar de uma situação comum, não é possível deparar com numerosos exemplos dessa limitação constitucional expressa de direitos fundamentais.
É possível, no entanto, apresentar dois mais flagrantes:
- a impossibilidade de a privação da cidadania e da capacidade civil, ambas reconhecidas através dos respectivos direitos fundamentais, se fundar em motivos políticos, podendo assim abranger outros motivos15;
- a possibilidade da extradição de cidadãos portugueses, em princípio vedada, segundo condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, sempre que o Estado requisitante ofereça garantias de um processo justo e equitativo16.
5. Os limites constitucionais implícitos
A consagração dos direitos fundamentais na Constituição Portuguesa, como tivemos ocasião de observar, não se reduz ao respectivo texto constitucional, mas antes acolhe – e, para alguns,
15 Cfr. o art. 26º, nº 4, da Constituição.
16 Cfr. o art. 33º, nº 3, da Constituição.
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mesmo com valor hierárquico constitucional – outras possíveis fontes.
Um lugar à parte nessas fontes extraconstitucionais que se afiguram atinentes aos direitos fundamentais é indubitavelmente conferido à Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada por resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 194817.
Em matéria de limitações implícitas aos direitos fundamentais, é de equacionar a função que aquela relevante carta internacional de direitos do homem possa desempenhar no seio do sistema constitucional português de direitos fundamentais.
Eis uma questão que se tem posto à doutrina no preciso ponto de saber se essa Declaração Universal pode ser invocada para se proceder, no plano interno, a uma limitação aos direitos fundamentais.
Vai exactamente nesse sentido o respectivo art. 29º, nº 2, que contém uma cláusula geral do seguinte teor: “No exercício destes
17 A respeito da relevância constitucional da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em geral, v. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., pp. 37 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos..., p. 143, e Constituição..., pp. 138 e 139; PAULO OTERO, Declaração Universal dos Direitos do Homem e Constituição: a inconstitucionalidade de normas constitucionais?, in O Direito, 1990, III-IV, pp. 603 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, pp. 145 e ss., e A Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Constituição Portuguesa, in AAVV, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 925 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, pp. 156 e ss.
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direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”.
O modo por que esta questão tem sido posta permite enquadrar as posições a este respeito expendidas em dois grupos, o dos que aceitam essa aplicação limitadora e o dos que a rejeitam:
1) a primeira posição apresenta como argumento o facto de, na ausência de uma cláusula geral de limitação dos direitos fundamentais inserta no texto da Constituição Portuguesa, ser sempre possível, havendo uma lacuna de regulamentação e apelando-se à respectiva função integradora, que tal preenchimento se possa realizar segundo os termos da Declaração Universal, neste particular com uma disposição aplicável18;
2) a outra posição não admite que a invocação da Declaração Universal possa ser feita com um espírito limitador ou constringente do sistema de direitos fundamentais,
18 Com este ponto de vista, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p. 232; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, p. 161.
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unicamente se enquadrando a mesma função integradora num sentido mais favorável ao cidadão contra o poder19.
Do nosso ponto de vista, a resposta a dar a este problema jamais pode desenraizar-se dos termos por que a Constituição Portuguesa realiza o chamamento da Declaração Universal.
Compulsando a letra e o espírito do art. 16º, nº 2, do respectivo articulado, não parece que possa haver dúvidas, na vertente integrativa, de que tal cláusula deva ser acolhida: não tendo a esse respeito a Constituição uma resposta, e a mesma sendo claramente dada na Declaração Universal, é inteiramente legítimo que a ela se recorra para o respectivo preenchimento20.
6. Os limites legais previstos pela Constituição – a restrição de direitos fundamentais
A disciplina dos direitos fundamentais, admitida pelo legislador constitucional, não oferece um panorama suficientemente completo do tipo de intervenção que a Constituição Portuguesa houve por bem fazer atribuir à lei infraconstitucional.
19 Neste sentido, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., p. 139.
20 Assim, PAULO OTERO, Declaração Universal..., pp. 610 e 611; JORGE BACELAR GOUVEIA, A Declaração Universal..., pp. 945 e ss.
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É que, em razão do posicionamento da normação legislativa ordinária, ao lado de um sentido de regulação, como vimos, incumbe-lhe também um papel de restrição, comprimindo o sentido constitucional dos direitos fundamentais consagrados.
Isso tem a doutrina portuguesa unanimemente equacionado conceptualmente como um fenómeno de restrição de direitos fundamentais, o qual se define do seguinte modo: a decepação definitiva, subjectiva ou objectivamente considerada, de aspectos do conteúdo ou do objecto do direito fundamental constitucionalmente concebido, feita a partir do legislador ordinário.
As considerações que expendemos a propósito dos termos da intervenção legislativa não restritiva nos direitos fundamentais valem, mutatis mutandis, para as intervenções de carácter restritivo. De igual forma se regista a dicotomia, falando em termos gerais, entre a reserva relativa de competência legislativa parlamentar para os direitos, liberdades e garantias e a competência legislativa concorrencial da Assembleia da República e do Governo para os direitos económicos, sociais e culturais.
O legislador constitucional, na atribuição que normativamente fez deste poder legal de cariz restritivo dos direitos fundamentais, perante alguns dos tipos de direitos fundamentais, estipulou a possibilidade de o legislador ordinário
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efectuar a respectiva restrição, instituindo parcelares mandatos de restrição legal.
Foi isso o que aconteceu com vários preceitos constitucionais, de que recordamos estes mais importantes:
- o tempo e as condições que a lei determinar na restrição da liberdade física21;
- os termos fixados por lei para quebrar a inviolabilidade do domicílio e o sigilo das telecomunicações e da correspondência22;
- as incapacidades que a lei geral deve prever para o exercício do direito de sufrágio23;
- os limites estabelecidos pela lei, tendo em conta o interesse geral, à iniciativa económica24.
Esse princípio da restrição legal constitucionalmente autorizada para cada direito fundamental que se pretenda comprimir está, aliás, em directa consonância com um dos princípios que se pode extrair do art. 18º da Constituição, que cuida do regime geral, formal e material, a que se submetem as intervenções legais restritivas dos direitos, liberdades e garantias. Aí se diz que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos no Constituição...”.
21 Cfr. o art. 27º, nº 3, da Constituição.
22 Cfr. o art. 34º, nºs 2 e 4, da Constituição.
23 Cfr. o art. 49º, nº 1, da Constituição.
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Tal princípio vem a ser o princípio da autorização constitucional expressa, que resume as preocupações de segurança que o legislador constitucional teve no sentido de evitar a fraude à Constituição e de, por conseguinte, impedir uma intervenção legal restritiva incontrolável. Duas são, pois, as condições que daqui se inferem: por um lado, a necessidade de o preceito constitucional prever essa intervenção restritiva; por outro lado, a imposição de que essa autorização, para restringir, seja feita a título expresso25.
O problema que tem sido posto na doutrina portuguesa é o de que, do ponto de vista prático, o respeito escrupuloso por aquele princípio bloquearia, de um modo excessivamente gravoso, a intervenção legislativa restritiva, não permitindo assim uma conveniente composição dos contrários e legítimos interesses em jogo.
É por isso que aquele princípio tem sido objecto de “suavização interpretativa”, reconhecendo-se a existência de autorizações implícitas de restrição legal para certos direitos fundamentais: isso com base numa análise material de cada direito
24 Cfr. o art. 61º, nº 1, da Constituição.
25 Como explicita J. J. GOMES CANOTILHO (Direito..., p. 424), “Esta individualização expressa tem como objectivo obrigar o legislador a procurar sempre nas normas constitucionais o fundamento concreto para o exercício da sua competência de restrição de direitos, liberdades e garantias, e criar segurança jurídica nos cidadãos, que poderão contar com a inexistência de medidas restritivas de direitos fora dos casos expressamente considerados pelas normas constitucionais como sujeitos a reserva de lei restritiva”.
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fundamental, sopesando os valores em presença, de uma parte, os da protecção efectiva do direito e, da outra parte, os dos interesses na sua restrição.
Quer isto dizer que, na prática, ao lado de autorizações explícitas específicas para restringir certos tipos de direitos fundamentais, se tem admitido, no fundo, a existência de uma cláusula geral de restrição legal sobre todo e qualquer direito fundamental, fundada em considerações materiais26, ancorando-se a mesma na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, uma vez que lhe compete legislar sobre direitos, liberdades e garantias, ou na competência concorrencial do Governo e do Parlamento, tratando-se de direitos económicos, sociais e culturais.
7. Princípios materiais rectores das restrições
As restrições constitucionalmente admissíveis aos direitos fundamentais – não já em termos organizatórios quanto em termos puramente materiais – não se apresentam livres ou em “branco”,
26 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., p. 151; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, pp. 332 e 333.
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pois que essas intervenções constringentes devem mostrar-se materialmente justificadas27.
A medida da intervenção restritiva de tipo legal é dada, no quadro do regime que a Constituição Portuguesa oferece no tocante às restrições que prevê, por vários princípios fundamentais:
- o princípio da protecção do núcleo essencial;
- o princípio da proporcionalidade;
- o princípio da generalidade;
- o princípio da abstracção; e
- o princípio da prospectividade.
Vejamo-los separadamente, embora os dois primeiros com mais detença.
a) Princípio da protecção do núcleo essencial
O princípio que materialmente se afigura mais intenso, mas também sendo aquele de mais difícil densificação, vem a ser o
27 Descrevendo o regime geral das restrições de direitos fundamentais, a partir do art. 18º, nºs 2 e 3, da CRP, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., pp. 229 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos..., pp. 133 e ss., e Constituição..., pp. 150 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, pp. 455 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito..., pp. 422 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, pp. 328 e ss.
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princípio da protecção do núcleo essencial dos direitos fundamentais a restringir.
Trata-se de uma preocupação de natureza material, que pretende evitar o esvaziamento dos direitos fundamentais restringidos, eventualmente tudo se permitindo em nome do valor, direito ou interesse que pseudo-fundamentasse a restrição em questão. Tal implica que haja sempre um sector irremissível dos direitos fundamentais cuja visibilidade é a missão primordial deste princípio.
Só que por detrás desta linearidade de raciocínio se esconde, desde logo, a extensão da definição desse núcleo essencial, degladiando-se neste ponto entre si as teorias absolutas e as teorias relativas quanto ao recorte do mesmo: aquelas defendendo que existe, abstractamente determinável, um núcleo essencial que nunca é legítimo tolher; estas aceitando diferentes intensidades na delimitação desse núcleo, consoante as circunstâncias do caso concreto e com recurso aos parâmetros ditados pelo princípio da proporcionalidade.
Não se encontrando uma resposta literal no texto constitucional, pensamos que a autonomização deste princípio da proporcionalidade, por um lado, e o facto de o sistema português se fundar no valor integrador da dignidade da pessoa humana,
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por outro lado, são fortes argumentos que nos impelem para aceitar as teorias absolutas e não as relativas28.
Do ponto de vista da conexão deste princípio enquadrador das restrições dos direitos fundamentais com os termos da respectiva positivação, suscita-se a dúvida de saber se ele visa a protecção de todo e cada direito fundamental, naquilo que se conceba mesmo na sua vertente subjectiva e individual, ou se o mesmo é compatível com uma visão menos exigente, em que se realçam apenas preocupações de carácter geral de equilíbrio do sistema de direitos fundamentais, ainda que isso possa sacrificar por completo alguns concretos e particulares tipos de direitos.
Neste aspecto, a letra da Constituição parece favorecer a ideia de que está em causa o preceito, preferindo-se um sentido objectivista contra um sentido subjectivista. Mas é forçoso aceitar que para alguns direitos, de novo particularmente importantes por força do princípio da dignidade da pessoa humana, possa prevalecer uma concepção subjectivista29.
b) Princípio da proporcionalidade
28 Assim, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p. 234; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito..., pp. 430 e ss.
29 Neste sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p. 235; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito..., p. 430.
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Outro princípio que orienta as opções do legislador que restringe direitos fundamentais tem que ver com a contenção do exercício desse poder ablativo em função de determinados ditames de ordem racional, segundo as três vertentes que são conhecidas no princípio da proporcionalidade, tal como tem sido gradualmente desenhado na doutrina e na jurisprudência publicista do pós-guerra:
i) a adequação da restrição ao fim que se tem em vista;
ii) a indispensabilidade da restrição relativamente a esse fim, em comparação com outros instrumentos possíveis de actuação legislativa, de carácter menos agressivo;
iii) a racionalidade do teor da restrição imposta em função do balanço entre as vantagens e os custos que derivam da respectiva utilização.
c) Outros princípios
A importância dogmático-regulativa das restrições aos direitos fundamentais implica ainda o extremo cuidado que o legislador constitucional colocou noutras dimensões da intervenção legislativa dos direitos fundamentais:
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- o princípio da generalidade, vedando-se a possibilidade de as respectivas normas visarem pessoas, identificáveis por si mesmas e não por categorias objectivas;
- o princípio da abstracção, pelo qual se impede que a estipulação de restrição atinja casos particulares, que se determinam em termos de espaço e de tempo;
- o princípio da prospectividade, por intermédio do qual se impede que os efeitos da restrição possam atingir situações da vida que se tenham produzido antes da respectiva entrada em vigor.
8. Os parâmetros teleológicos das restrições
O texto constitucional assume como finalidade expressa das restrições a necessidade da salvaguarda dos outros direitos fundamentais. Disso mesmo cura o emblemático preceito constitucional que versa o regime das restrições, afirmando que devem “…as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”30.
Essa não deixa de ser, contudo, uma alusão escassa sob a óptica da identificação desses valores em nome dos quais podem ser erguidas as restrições.
30 Art. 18º, nº 2, in fine, da Constituição.
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Mas é possível fazer a respectiva indiciação, assim se legitimando uma intervenção restritiva pela respectiva invocação, dos quais se evidenciam os seguintes:
- a segurança do Estado e a segurança pública;
- a protecção do ambiente e do ordenamento do território;
- vários motivos de bem comum relativos ao consumo, à saúde e à propriedade privada;
- a dignidade da pessoa humana.
a) Segurança do Estado, segurança pública
No tocante à ideia da segurança do Estado, é pacífico aceitar não só a pertinência desse valor na inerência da própria ideia de Estado juridicamente estruturado como igualmente a sua valia como justificação da restrição de certos direitos fundamentais, de que cumpre referir os seguintes casos:
a) do direito de acesso à informação administrativa – com o mecanismo do segredo de Estado, pelo qual se impede o conhecimento generalizado da comunidade relativamente a determinadas informações públicas constantes de arquivos e registos administrativos, vê-se a restrição do direito fundamental, enunciado em termos gerais, ao open file na Administração Pública, precisamente porque em
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determinados casos se afigura prevalente a necessidade de resguardar certas informações em nome da segurança, interna e externa31, do Estado32;
a) da liberdade física dos cidadãos – através da imposição de um conjunto de tipos criminais sob a ideia unitária da defesa do Estado, os chamados crimes contra o Estado, verifica-se que a limitação da liberdade física das pessoas se funda na prossecução deste valor constitucional fundamental;
b) do direito de acesso aos processos penais – por intermédio do segredo de justiça, que impossibilita o acesso do arguido às peças processuais até ao momento da acusação pelo Ministério Público, admite-se a restrição do direito de que o arguido goza de aceder às peças processuais criminais que a seu respeito existam, em nome da preservação da efectividade da justiça e da eficiência da acção penal na recolha de provas33.
b) Protecção do ambiente e do ordenamento do território
31 Cfr. os arts. 164º, al. q), e 268º, nº 2, da Constituição.
32 Cfr. JORGE BACELAR GOUVEIA, Segredo de Estado, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, VII, Lisboa, 1996, pp. 366 e ss.
33 Cfr. o art. 268º, nº 2, da Constituição.
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A Constituição Portuguesa, em demonstração, aliás, da respectiva modernidade, confere um largo tratamento às questões ambientais. E fá-lo de um modo dúplice: i) consagrando, no tocante aos direitos fundamentais de cariz social, um direito ao ambiente e à qualidade de vida34; ii) reconhecendo no ambiente um interesse difuso, susceptível de proporcionar a associações cívicas que actuem nesta área a possibilidade da defesa dos respectivos interesses através de uma legitimidade processual activa de tipo popular35.
A consideração constitucional da realidade ambiental pode também justificar a imposição de restrições a vários direitos fundamentais, sobretudo aqueles que economicamente se situem relacionados com a edificação de construções e a utilização dos solos.
Daí que sejam pensáveis restrições ao conteúdo de certos direitos fundamentais de teor económico – nomeadamente o direito de propriedade e o direito de iniciativa económica – no caso de se enquadrar a defesa daqueles valores.
É nesse sentido que a própria Constituição Portuguesa aponta na sua parte inicial, ao apresentar como uma das tarefas fundamentais do Estado precisamente “Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o
34 Cfr. o art. 66º da Constituição.
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ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território” 36.
c) Outros motivos do bem comum
Ainda que normativamente mais desenvolvidos no texto constitucional, estes valores da segurança do Estado e da preservação do ambiente e do ordenamento do território não são os únicos que se admitem como possibilitando a imposição de restrições aos direitos fundamentais.
Outros valores existem que, do mesmo modo, legitimam uma intervenção restritiva por parte do legislador, e que sinteticamente podemos elencar:
1) a protecção da saúde pública – a qual possibilita inúmeras restrições ao direito de iniciativa económica, através do estabelecimento de constrições nessa actividade que se traduza em actos de consumo;
2) a consagração da função social da propriedade privada – a qual implica que o direito de propriedade não seja encarado de um modo absoluto, sendo de referir, principalmente, a possibilidade das intervenções expropriatórias em nome
35 Cfr. o art. 52º, nº 3, da Constituição.
36 Art. 9º, al. e), da Constituição.
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da defesa do interesse geral, com a devida compensação indemnizatória;
3) a garantia dos direitos dos consumidores – os quais, consistindo na faculdade que a estes assiste, segundo o texto constitucional, de exigir a qualidade dos bens e serviços consumidos, a formação e a informação, a protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como a reparação de danos37, justificam um conjunto de limitações que se impõem à actividade económica ligada ao comércio e ao consumo, maxime no domínio das limitações bastante abrangentes que se colocam à actividade publicitária38;
4) a defesa da privacidade e da intimidade – este valor, apresentando-se no texto constitucional como justificando restrições a vários direitos fundamentais, parcialmente sobrepostos, possibilita a limitação quer da utilização de dados pessoais a respeito de pessoas e famílias – os chamados direitos fundamentais à protecção dos dados pessoais informatizados39 – quer do acesso generalizado a
37 Cfr. o art. 60º, nº 1, da Constituição.
38 Cfr. o art. 60º, nº 2, da Constituição.
39 Cfr. o art. 35º da Constituição. Cfr. JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais à protecção dos dados pessoais informatizados, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 51, III, Lisboa, Dezembro de 1991, pp. 703 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., pp. 215 e ss.
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informações administrativas que revelam aspectos da intimidade, assim não acessíveis por qualquer cidadão.
d)A dignidade da pessoa humana
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A explicitação dos fundamentos das restrições aos direitos fundamentais não pode, por fim, desprender-se das considerações de carácter geral que se extraem do primeiro dos princípios constitucionais que animam o Direito Constitucional Português – o princípio da dignidade da pessoa humana 40.
É precisamente tendo em conta esta sua vital importância que logo o inicial artigo do texto constitucional português, não deixando dúvidas quanto à sua pertinência, o enuncia solenemente: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”41.
Para além das múltiplas funções metafísicas e dogmático-positivas que hoje em dia pacificamente se lhe reconhecem, o princípio da dignidade da pessoa humana não somente explica a atribuição de direitos fundamentais aos cidadãos, no confronto que estes vivificam com o Estado-Poder.
40 Quanto à dignidade da pessoa humana na Constituição Portuguesa, v. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., pp. 58 e 59; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, pp. 384 e ss., e O estado de excepção no Direito Constitucional – entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, II, Coimbra, 1998, pp. 1463 e ss.; PAULO OTERO, O poder de substituição em Direito Administrativo – enquadramento dogmático-constitucional, II, Lisboa, 1995, pp. 553 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito..., pp. 219 e 220; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, pp. 180 e ss.
41 Art. 1º da Constituição.
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Pode igualmente surgir como muito operacional e efectivo na justificação de certas restrições a esses mesmos direitos fundamentais. Isto bem comprova, de resto, o transversalismo deste princípio, que emerge como plenamente válido, dados os valores que nele se transportam, sem dependência do tipo de relação que esteja em questão, assim se assumindo objectivamente funcional: serve também para restringir certos direitos fundamentais na parte em que não traduzam directamente os respectivos ditames.
É possível equacionar o recurso, em termos gerais, a este princípio fundamental do Direito Constitucional Português, sempre que o teor das restrições que se pretendam cominar atinjam este princípio, quer porque o mesmo sobressai na compressão do núcleo essencial do direito fundamental a restringir, quer porque é a sua defesa que legitima certas restrições de outros direitos.
Mesmo que não se lhe reconheça esta função restritiva de carácter geral de um modo expresso, o recurso a este princípio acaba sempre por se afigurar necessário na compreensão da unidade de sentido do sistema constitucional que o mesmo protagoniza.
III
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OS LIMITES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA TITULARIDADE DE PESSOAS COM ESTATUTOS ESPECIAIS
9. Militares e paramilitares
A primeira categoria de pessoas em que se verifica um regime específico de restrição de direitos fundamentais corresponde aos militares e aos paramilitares42.
Segundo o que se dispõe na Constituição Portuguesa, a “...lei pode estabelecer restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva dos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, bem como por agentes dos serviços e forças de segurança, na estrita medida das exigências das suas funções próprias”43.
Em termos organizatórios, a particularidade digna de registo respeita à circunstância de, nestes casos, a aprovação da lei que introduz estas restrições nos direitos fundamentais destes cidadãos dever ser aprovada por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados
42 Quanto a este caso especial de restrição de direitos fundamentais, v. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., pp. 245 e 246; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., pp. 949 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito..., pp. 425 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, pp. 335 e 336.
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em efectividade de funções44. A maioria de dois terços dos Deputados em efectividade de funções assume-se como um desvio relativamente à regra geral do número de votos necessários para a aprovação de um acto legislativo parlamentar – a maioria relativa, ou seja, mais votos a favor do que contra45.
O conjunto dos direitos fundamentais que se encontram abrangidos por esta especial cláusula de restrição, definidas em termos da pertença a um determinado estatuto, é taxativamente enunciado no texto constitucional, estando em causa normas dotadas de uma excepcionalidade material evidente.
O fio condutor que se descobre nesses direitos assimila-os a uma restrição de “ordem essencialmente política”, visando conferir ao estatuto das forças militares e paramilitares uma neutralidade activa em face do poder político, impedindo-as assim de tomar parte nas respectivas decisões, quer no momento da designação dos respectivos titulares, quer no momento da formação da opinião pública.
A definição de quem seja “militar” ou “paramilitar” não é constitucionalmente apresentada, sendo necessário fazer o respectivo preenchimento com o recurso à legislação ordinária que cuida do estatuto militar. Note-se, no entanto, que se opera a
43 Art. 270º da Constituição.
44 Cfr. o art. 168º, nº 6, da Constituição.
45 Cfr. o art. 116º, nº 3, da Constituição.
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limitação da possibilidade da restrição aos militares e paramilitares que se encontram no quadro permanente, não a todos eles.
10. Reclusos
Outra situação que também merece referência no plano das limitações de direitos fundamentais que respeitam às pessoas que se encontrem em determinadas circunstâncias é a daqueles que se sujeitam à aplicação de uma medida privativa de liberdade46.
Ainda que constitucionalmente se não faça essa destrinça e ainda que, no plano valorativo e processual, se trate de casos assinalavelmente diversos, é de equiparar à situação de preso com sentença transitada em julgado o preso preventivamente.
Perante a ausência de resposta ao nível do texto constitucional primitivo, a revisão constitucional de 1982 aditou um número ao artigo sobre os limites das penas e das medidas de segurança47, nele se dizendo que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.
46 Reflectindo sobre a particular restrição de direitos fundamentais para pessoas privadas da liberdade, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p. 246; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., p. 198.
47 Cfr. o art. 30º, nº 4, da Constituição.
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A partir da revisão constitucional de 1989, a Constituição Portuguesa passou ainda a contemplar outro número, esclarecendo definitivamente esta questão. Assim passou a dizer o seguinte: “Os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução”48.
O princípio geral que ficou reafirmado é o de que os reclusos, só pelo facto de terem sido condenados a uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade, não perdem só por isso a titularidade de direitos fundamentais. E a Constituição Portuguesa admite-o em termos muitíssimo latos porque refere, alargadamente, “direitos civis, profissionais ou políticos”, com isso se afastando o penoso espectro da “morte civil”, não podendo os presos ser considerados vítimas de uma qualquer capitis deminutio.
A primeira das excepções em que se admite uma restrição na titularidade de direitos fundamentais relaciona-se, segundo o que se diz no texto constitucional, com o sentido da condenação que se obtém da pena privativa de liberdade. Facilmente se compreende que, tratando-se da aplicação de uma pena ou medida de segurança desse jaez, não possa o preso reivindicar a titularidade do direito que essa mesma pena ou medida de segurança visa
48 Art. 30º, nº 5, da Constituição.
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coarctar, que é a liberdade física, nos precisos termos nela estipulados, quanto ao local, duração e modo de execução.
A outra das excepções, não tendo já que ver directamente com o sentido da condenação que priva o preso da liberdade física, assume-se como a decorrência lógica da respectiva execução. Ela implica que o preso não possa usufruir dos direitos fundamentais que, não integrando o tipo da liberdade física, também não possam, a título lateral, ser exercidos em vista da situação de prisão em que se encontra.
São todos aqueles direitos fundamentais cujo exercício só possa ter logicamente sentido havendo o pressuposto da liberdade física e que não possam ter lugar numa situação de aplicação da pena privativa de liberdade – os direitos fundamentais que se apresentem materialmente dependentes da liberdade física das pessoas ou da possibilidade de que a mesma venha a ser exercida.
Não se explicitam na Constituição, relativamente a esta segunda excepção, quais os direitos fundamentais que não podem ser objecto de exercício em atenção à respectiva incompatibilidade com a situação de privação de liberdade. Mas é evidente que deve aqui funcionar um nexo de conexão material, que afasta qualquer arbitrariedade possível.
11.Estrangeiros e apátridas
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Situação que ainda merece observação, no tocante a um especial estatuto de direitos fundamentais por referência a pessoas, é a das pessoas que não tenham cidadania portuguesa, igualando-se, para o efeito, os estrangeiros e os apólides.
Numa manifesta e rasgada generosidade, o legislador constitucional português entendeu por bem estabelecer como princípio geral, no tocante à titularidade dos direitos fundamentais em razão deste aspecto do laço de cidadania, o princípio da equiparação: à partida, os estrangeiros e os apátridas gozam dos mesmos direitos fundamentais de que usufruem os cidadãos portugueses49.
A extensão desse princípio geral não se apresenta, no entanto, como total e deparamos com três conjuntos de domínios que limitam uma potencial e irrestrita aplicação de tal princípio50:
1) os direitos políticos;
2) o exercício de funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico;
3) os direitos (e os deveres) reservados pela Constituição ou pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.
Todavia, a Constituição Portuguesa recorta, dentro da categoria dos cidadãos de cidadania estrangeira, três grupos de
49 Cfr. o art. 15º, nº 1, da Constituição.
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cidadãos a quem confere estatutos privilegiados se os compararmos com os restantes estrangeiros e com os apátridas em geral, assim recuando nas limitações genericamente impostas aos cidadãos estrangeiros, aceitando o exercício de direitos fundamentais que, em princípio, lhes seriam vedados.
Essas categorias são (i) os cidadãos de língua portuguesa, (ii) os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal e (iii) os cidadãos da União Europeia.
a) Cidadãos dos países de língua portuguesa: atribuição geral, por convenção internacional e através da condição de reciprocidade, de direitos não atribuíveis aos estrangeiros, com excepção do acesso aos órgãos de soberania e das regiões autónomas, o serviço nas forças armadas e a carreira diplomática51;
b) Cidadãos estrangeiros residentes no território nacional: atribuição por lei, mediante a condição de reciprocidade, de capacidade eleitoral activa e passiva na eleição dos órgãos das autarquias locais52;
c) Cidadãos dos Estados da União Europeia residentes no território português: atribuição por lei, mediante a condição
50 Cfr. o art. 15º, nº 2, da Constituição.
51 Cfr. o art. 15º, nº 3, da Constituição.
52 Cfr. o art. 15º, nº 4, da Constituição.
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de reciprocidade, de capacidade eleitoral activa e passiva na eleição para o Parlamento Europeu53.
IV
OS LIMITES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM
ESTADO DE EXCEPÇÃO
12.O regime geral do estado de excepção constitucional
A positivação do estado de excepção no Direito Constitucional Português esteia-se nas duas figuras do estado de sítio e do estado de emergência54, a primeira com raízes no constitucionalismo português porque introduzida na Constituição de 1911 (o nosso quarto texto constitucional e que implantou a forma republicana de governo) e a segunda criada, originalmente, com a vigência da Constituição de 1976.
53 Cfr. o art. 15º, nº 5, da Constituição.
54 Sobre o estado de excepção em geral, v. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., pp. 314 e ss.; CARLOS BLANCO DE MORAIS, O estado de excepção, Lisboa, 1984, pp. 61 e ss.; ANTÓNIO DAMASCENO CORREIA, O estado de sítio e o estado de emergência em democracia, Lisboa, 1989, pp. 111 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos..., p. 139, e Constituição..., pp. 156 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, pp. 457 e ss., e O estado de excepção…, I, pp. 557 e ss., e IBIDEM, II, pp. 781 e ss.; J. J. GOMES
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a) Fontes
Na sua essência, o regime constitucional do estado de sítio e do estado de emergência – que podem ser conjuntamente designados por estado de excepção – foi logo definido na versão primitiva da Constituição, tendo as posteriores revisões constitucionais efectuado alterações de pouca monta.
Em resumo, podemos registar dois diferentes contributos:
a) Revisão constitucional de 1982 – por um lado, a maior democratização do procedimento decisório do estado de excepção, em decorrência, em geral, da maior democraticidade alcançada no sistema de governo português, mercê da substituição de um órgão de cariz militar e revolucionário (o Conselho da Revolução), sendo a respectiva intervenção de tipo autorizativo enquadrada por uma intervenção de tipo consultivo a cargo do Conselho de Estado; por outro lado, o aperfeiçoamento garantístico que se obteve através do aumento do número expresso de direitos fundamentais que são insusceptíveis de suspensão na pendência das situações de excepção;
CANOTILHO, Direito..., pp. 978 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, pp. 346 e ss.
41
b) Revisão constitucional de 1989 – muito menos importante do que a primeira, esta revisão caracterizou-se por um aperfeiçoamento técnico-jurídico do regime do estado de excepção, com o esclarecimento de dúvidas que a redacção inicial tinha suscitado na doutrina, sobretudo na disciplina dos aspectos jurídico-formais da declaração do estado de excepção.
As fontes da regulação do estado de excepção não se limitam, todavia, ao texto constitucional, havendo ainda que realçar tanto as fontes internacionais como as fontes internas.
No plano internacional, Portugal encontra-se vinculado aos sistemas de protecção dos direitos do homem da Organização das Nações Unidas e do Conselho de Europa, pelo que também por aqui se aplicam os respectivos textos. E repare-se que, não obstante ter havido a formulação de algumas reservas por parte de Portugal, na matéria das derrogações aos direitos do homem que são previstas no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos como na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não se depara com qualquer desvio relativamente ao regime que é formulado, respectivamente, nos seus arts. 4º e 15º, assim plenamente aplicáveis na ordem jurídica portuguesa.
No plano legal, o regime constitucional do estado de excepção é essencialmente desenvolvido por uma lei que apenas
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trata destas matérias – a lei sobre o regime do estado de sítio e do estado de emergência55. Apesar do seu carácter específico, esse não vem a ser o único diploma pertinente porque outra legislação existe que, pontualmente, trata de aspectos relacionados com o regime do estado de excepção: a legislação sobre referendos, a legislação sobre a responsabilidade penal dos titulares dos cargos políticos ou a legislação sobre a defesa nacional e as forças armadas.
O regime do estado de excepção constitucional, expostas as respectivas fontes, pode ser distribuído pelos seguintes aspectos:
1) pressupostos – situações de crise político-social;
2) efeitos materiais – a suspensão de direitos fundamentais;
3) efeitos organizatórios – o reforço das competências das autoridades administrativas;
4) procedimento de decretação – intervenção partilhada dos órgãos de soberania politicamente activos;
5) controlo da execução – político-parlamentar e jurisdicional.
b) Pressupostos
55 A Lei nº 44/86, de 30 de Setembro, abreviadamente LRESEE.
43
O texto constitucional, em matéria de pressupostos do estado de excepção, considera três situações possíveis para se levar a cabo a respectiva decretação:
i) a “agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras” – uma situação de carácter militar internacional, em que se regista a ofensa da integridade territorial do Estado;
ii) a “grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática” – uma situação de carácter político-institucional, na qual se põem em causa a estrutura constitucional do Estado, nos seus aspectos e princípios nucleares;
iii) a “calamidade pública” – uma situação de cariz social, de elevados prejuízos e que atinge um grande número de pessoas, causada por acidentes tecnológicos ou por catástrofes naturais.
c) Efeitos
A decisão sobre a decretação do estado de excepção – seja o estado de sítio, seja o estado de emergência – assume-se como possuindo um carácter discricionário, sendo internamente delimitada pelo princípio da proporcionalidade, designadamente
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impondo a contenção dos efeitos materiais (de suspensão de direitos fundamentais), organizatórios (da tomada das medidas administrativas apropriadas), territoriais (de escolha da parcela do território nacional em que esses efeitos vão ter lugar) e temporais (da duração desses efeitos), segundo os termos particularmente exigentes desse princípio fundamental de Direito Público56.
Os efeitos de índole material abarcam a suspensão dos direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição Portuguesa. A LRESEE prevê, no entanto, limitações nalguns direitos susceptíveis de suspensão, bem como ainda a insuspensabilidade de certos direitos. A Constituição determina ainda a impossibilidade da suspensão destes direitos fundamentais: os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião57.
Os efeitos de cariz organizatório são muito mais limitados se comparados com os efeitos materiais. De um modo geral, permite-
56 É do seguinte teor o preceito constitucional que consagra o princípio da proporcionalidade, que é o art. 19º, nº 4, da Constituição: “A opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como as respectivas declaração e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”.
57 Cfr. o art. 19º, nº 6, da Constituição.
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se o reforço das competências administrativas do Governo, órgão que chefia a execução do estado de excepção. Isso explica-se pelas características que inerem ao exercício da função administrativa por parte do Governo, não só a continuidade, mas também a colegialidade restrita, bem como a disposição dos meios materiais de uso da força – as polícias e as forças armadas.
Relativamente às competências constitucionalmente estabelecidas dos órgãos de soberania que não sejam do foro administrativo, a orientação geral é a da respectiva intangibilidade, o mesmo se dizendo no tocante aos órgãos das regiões autónomas. Com a decretação do estado de excepção, não se opera uma qualquer concentração de poderes no Governo, que vê unicamente os seus poderes administrativos reforçados, mantendo-se os restantes órgãos no exercício das suas competências ordinárias.
O estado de excepção tem mesmo, em certos casos, o efeito contrário de congelar o exercício de outras competências constitucionais, as quais não podem ser exercidas enquanto se mantiver a respectiva vigência: a proibição da dissolução do Parlamento58 ou a proibição da revisão constitucional59.
58 Cfr. o art. 172º, nº 1, da Constituição. Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., p. 703.
59 Cfr. o art. 289º da Constituição. Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p. 316; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os limites circunstanciais da revisão constitucional, in Revista Jurídica, nºs 11 e 12,
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d) Procedimento
Em termos de declaração do estado de sítio e do estado de emergência, regista-se um procedimento de decretação em que se envolvem os diversos órgãos do Estado, com isso se atestando, aliás, a extraordinária importância que a Constituição Portuguesa atribuiu a esta situação de excepção constitucional:
a) Iniciativa do Presidente da República: perante o preenchimento dos respectivos pressupostos, cabe ao Chefe de Estado tomar oficiosamente a iniciativa de pôr em marcha um procedimento para declarar o estado de sítio e o estado de emergência, elaborando para o efeito um projecto de declaração;
b) Audição, a título instrutório, do Governo: havendo a intenção de iniciar o procedimento, o Presidente da República deve consultar o Governo, que emite parecer obrigatório e não vinculativo;
c) Autorização da Assembleia da República: o projecto de declaração, devidamente acompanhado do parecer do Governo, é depois submetido a apreciação da Assembleia
Janeiro-Junho de 1989, pp. 103 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., pp. 1067 e 1068.
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da República, que lhe concede ou não a sua autorização, não podendo, em todo o caso, introduzir-lhe emendas;
d) Decisão final do Presidente da República: havendo a autorização parlamentar, cabe ao Presidente da República a última palavra, decretando ou não o estado de sítio e o estado de emergência exactamente nos termos propostos (tendo ainda que contar com a referenda ministerial).
e) Controlo
O cuidado que o legislador constitucional pôs na elaboração de um regime do estado de excepção que respeitasse os exigentes vectores do Estado de Direito, de que a Constituição Portuguesa justamente se reclama, visualiza-se ainda no tipo de controlo que entende fazer incidir sobre os respectivos actos.
O controlo de natureza política compete à Assembleia da República, a quem se atribui o poder de fiscalizar, a posteriori, a execução do estado de excepção, com a aplicação da responsabilidade política – a demissão do Governo por aprovação de uma moção de censura – ou da responsabilidade penal – por indiciação através de comissões de fiscalização parlamentar.
O controlo de natureza jurisdicional efectiva-se, essencialmente, pelo Tribunal Constitucional, a quem compete verificar a
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constitucionalidade dos actos de decretação e de execução do estado de excepção que tenham natureza normativa, incumbindo aos restantes tribunais verificar a legalidade dos actos não normativos, bem como a aplicação da responsabilidade penal e civil que decorra da sua prática.
13.O estado de sítio e o estado de emergência – aspectos diferenciadores
A dualidade de figuras de estado de excepção, tal como o mesmo se encontra gizado pelo Direito Constitucional Português, só seria dogmaticamente aceitável se a uma distinção terminológica correspondesse, na verdade, uma diferenciação de regimes aplicáveis a cada uma dessas figuras.
Estamos em crer que essa diferença de regime existe. Simplesmente, ela é tão ténue que nunca poderia justificar, por si mesma, a apresentação separada das duas figuras, pelo que se costuma normalmente optar pela sua apresentação conjunta. Note-se que este não é o panorama do Direito Constitucional Comparado Europeu, que normalmente acentua – até por razões
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históricas muito fortes – a dissociação de variados instrumentos do estado de excepção.
É no plano da Constituição Portuguesa que se situam as diferenças menos sensíveis entre o estado de sítio e o estado de emergência. Os critérios que, segundo o texto constitucional, permitem fazer a separação regimental entre o estado de sítio e o estado de emergência são dois, um qualitativo e o outro quantitativo:
- o critério qualitativo tem que ver com a maior gravidade dos pressupostos do estado de sítio por comparação com os pressupostos que originam o estado de emergência;
- o critério quantitativo liga-se à circunstância de o estado de emergência, ao contrário do que sucede com o estado de sítio, só poder suspender alguns – e não todos os que seria possível, pelo menos em abstracto, suspender – direitos, liberdades e garantias.
No plano da normação infraconstitucional, avançam-se com outros relevantes critérios, para além da densificação que se faz do primeiro dos critérios constitucionais enunciados. A LRESEE explicita que os dois pressupostos da agressão militar e da perturbação da ordem constitucional originam o estado de sítio e o pressuposto da calamidade pública dá azo ao estado de emergência. Os novos critérios legais, que vão para além daquilo
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que se estabelece na Constituição, são: o grau de militarização das autoridades administrativas – com a substituição e a subordinação das autoridades civis pelas autoridades militares no estado de sítio e apenas a coadjuvação daquelas por estas no estado de emergência; a intervenção das autoridades judiciárias militares – que existe no estado de sítio, mas não ocorre no estado de emergência.
Jorge Bacelar Gouveia
BIBLIOGRAFIA PORTUGUESA FUNDAMENTAL
J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra, 1999
J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA: Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991; Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993
JORGE BACELAR GOUVEIA: Os direitos fundamentais atípicos, Lisboa, 1995; O estado de excepção no Direito Constitucional – entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, I e II, Coimbra, 1998; Estudos de Direito Público, I, Cascais, 2000
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JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, IV, 3ª ed., Coimbra, 2000
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983

Os Supremos Tribunais e o triunfo do liberalismo

" Texto enviado para a Corte Suprema de Justiça de Espanha para as comemorações dos 200 anos da sua existência na sequência da Constituição liberal de Cádiz de 1812."



Os Supremos Tribunais e o triunfo do liberalismo
Os Supremos Tribunais europeus, tal como os conhecemos - e, neste caso concreto, os ibéricos - são um produto das revoluções burgueso-liberais a que o continente assistiu nos séc. XVIII e XIX.
Em Espanha, o Tribunal Supremo provém da Constituição de Cádis, em 1812; em Portugal, o Supremo Tribunal de Justiça provém da Constituição de 1822, descendente directa da Revolução liberal de 1820 que eclodiu no Porto e se estendeu ao país inteiro.
O que há de comum, na Península Ibérica (ou seja, em Portugal e Espanha) em todo este processo é algo de contraditório e, por isso, de fascinante num séc. XIX conturbado e de variados terramotos sociais.
O parlamentarismo e o liberalismo burguês a ele associado nasceram na Inglaterra do séc. XVII com as revoluções de 1648 e, principalmente, de 1688 (a Gloriosa Revolução) à medida que os ingleses se vão apoderando de colónias (e matérias-primas) espanholas e, fundamentalmente, francesas a ponto de a Guerra dos Sete Anos chancelar essa hegemonia inglesa nascente; em 1700, os ingleses criaram o primeiro Banco Central (o Banco de Inglaterra) como forma de regular um mercado que rapidamente perceberam que tinha que ser regulado e controlado.
John Locke teorizou, então, pela primeira vez, a tese da separação dos poderes do estado; mas a visão liberal inglesa foi essencialmente para uso interno pois pouco lhe interessava quer a visão continental sobre a matéria quer a sucessão de acontecimentos continentais desde que não colidissem com os seus próprios interesses.
Foi a Revolução francesa que veio universalizar na Europa os princípios estruturantes do liberalismo, da igualdade e da liberdade.
Mas tal revolução levou, em linha recta, à formatação de um estado (a França) com tendências hegemónicas de expressão imperial que, durante anos, pôs a Europa a ferro e fogo.
Esta foi a grande contradição que marcou a génese do liberalismo ibérico e que - findas as guerras napoleónicas - colocou na mesa da Conferência de Viena, em 1815, uma proposta igual à que atingiu a Alemanha em 1945: a divisão territorial da França como forma de a conter no futuro, e que não vingou apenas por resistência de alguns dos países vencedores.

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As invasões napoleónicas de Portugal e Espanha trouxeram, como se disse, marcas contraditórias: por um lado, provocaram um levantamento popular ímpar que se traduziu na primeira guerra de guerrilha dos tempos modernos com povos mal armados mas resistindo como ninguém aos intrusos invasores; por outro, deixaram o legado das ideias liberais que as elites ibéricas cultas e progressistas assimilaram abrindo caminho aos novos tempos.
A guerrilha popular dos povos ibéricos às tropas napoleónicas ficou na memória histórica desses países: em Portugal, fixou-se no relato de emboscadas noturnas, ataques inesperados às tropas francesas, na toponímia de vários locais, tudo aproveitando os caminhos sinuosos e antiquados e as passagens estreitas onde os exércitos e a artilharia napoleónica mal podiam avançar (a emboscada de Enxabarda ficou na memória mítica da Beira); em Espanha, depois do sequestro de Carlos IV e Fernando VII, fixou-se, além do mais, nas telas imortais de Goya, principalmente na carga da Porta do Sol de 2 de Maio onde ainda se vêem pintados os mamelucos trazidos do Egipto e nos fuzilamentos de 3 de Maio (ícone que irá influenciar as pinturas de Manet sobre o fuzilamento de Maximiliano no México, de Picasso nas execuções da guerra da Coreia e do alemão Vostell no "Miss América" da guerra do Vietname).
A lenta progressão das tropas inglesas de Wellington associadas às portuguesas e espanholas acabou com o sonho napoleónico em Vitória; mas os "desastres de guerra", como diria Goya, foram grandes de mais para serem esquecidos.
Ainda hoje, Portugal e Espanha têm um facto esquecido que provém desse tempo trágico: construído, no séc. XIX, o caminho de ferro, os dois países ibéricos decidiram ter medidas diferentes de ferrovias em relação aos outros países europeus para que se não voltasse a repetir uma nova invasão francesa, agora mais rápida, aproveitando a nova tecnologia do transporte.
Mas de outra parte, as guerras peninsulares deixaram-nos o legado das ideias liberais; e esse foi o fermento que fez nascer o Portugal e a Espanha modernos.
As elites burguesas ibéricas absorveram aquilo que, já desde o iluminismo oitocentista, vinha germinando.
O liberalismo explode na Península Ibérica como um grito de liberdade para um novo mundo: a Constituição de Cádis de 1812 e, depois, a portuguesa de 1822, são os marcos primeiros de uma vitória inicial que vai ter, depois, muitos acidentes de percurso, o principal dos quais as guerras civis que Espanha e Portugal vão viver.
Porque à vitória inicial dos liberais vai suceder-se a reacção violenta dos absolutistas que põe, de novo, a Península Ibérica a ferro e fogo, à semelhança, aliás, do que - ao longo do séc. XIX - aconteceu também em França.
A Espanha assistiu às guerras civis carlistas, com as indecisões de Isabel II, ora repondo a Constituição de Cádis ora encostando-se aos anti-liberais; Portugal assistiu a um jogo de xadrez mais linear com a guerra civil mortífera entre dois irmãos-reis, Pedro IV (o rei legítimo) liderando os liberais e Miguel (rei usurpador) liderando os absolutistas e apoiando os carlistas espanhóis, guerra que findou com a vitória esmagadora dos liberais em 1833/1834.
Pedro IV de Portugal foi um rei visionário: deu pacificamente a independência ao Brasil (o Brasil foi a única colónia europeia que, nos sécs. XVIII e XIX se tornou independente sem guerra), renunciou à sua coroa brasileira, veio para a Europa chefiar o exército liberal português até à vitória, renunciou à coroa portuguesa, teve uma elite que o acompanhou e que fez uma reforma profunda em Portugal (nomeadamente nos Tribunais) e morreu com 35 anos apenas.

× × × × ×

O sistema judiciário que, hoje, todos temos provém desse tempo de gestação de coisas novas.
Foi o liberalismo que trouxe, de vez, os Tribunais do estado-nação, aplicando igualmente a lei para todos, com juízes gozando de independência na função de julgar como forma de garantir a igualdade dos cidadãos através de leis gerais e abstractas.
Os Tribunais, estruturados em pirâmide, em três patamares, conferindo aos cidadãos o direito ao recurso (ou seja, a um duplo grau de apreciação) vêm essencialmente dessa época.
É óbvio que um sistema assim não surge de repente gerado à pressa pelo liberalismo triunfante nas sociedades europeias; ele resulta de um lento processo de evolução histórica que começa no fim da Idade-Média, início da Renascença, sofre uma mudança profunda e estrutural no séc. XVII com a guerra dos Trinta Anos e o Tratado de Vestefália e vai criando - a partir daí e centrado no iluminismo nascente - o conjunto de princípios jurídicos que fazem parte, hoje, do património universal do Direito dos países desenvolvidos.
No início dos reinos da Europa Ocidental, o juiz era tão-só um agente do rei, um mero instrumento de concentração do poder real e da vontade do monarca ungido por opção divina.
Coke foi o primeiro a ter a percepção de que um juiz não era um agente do seu rei, do rei de Inglaterra; era, sim um agente do povo.
Mas, esse, era tempo demasiado cedo para se perceber a intuição premonitória de Coke.
O séc. XVII vai ser o marco decisivo para o aparecimento da nova Europa e de uma nova visão do juiz e dos Tribunais.
A partir do séc. XVII, e com Vestefália, surgem os estados modernos com o seu aparelho decisório burocrático e sedimentam-se sucessivamente os princípios jurídicos que formam a trave-mestra dos nossos sistemas judiciários contemporâneos: o juiz torna-se independente para poder julgar imparcialmente deixando de ser o juiz do rei e passando a ser o juiz da nação erigida em estado, os crimes e as penas devem ser tipificados (acabando com a arbitrariedade do príncipe), a lei penal não pode ser retroactiva, rejeita-se a existência de tribunais especiais para o julgamento criminal, o direito natural passa a ser critério orientador da interpretação das leis, estrutura-se o direito administrativo com o princípio basilar da obediência hierárquica admitindo-se porém - quanto a esta - pequenas válvulas de segurança e, por fim, fixa-se a regra inalienável da reserva do juiz, ou seja, só este pode julgar e só este tem competência exclusiva para decidir dos direitos e liberdades individuais dos cidadãos.
Com o tempo, e já entrados no séc. XX, a nossa modernidade mostrou-nos que a diferença entre as democracias e os totalitarismos/ditaduras passava exactamente por este Rubicão, ou seja, por este leque visível de princípios inalienáveis que o iluminismo e as revoluções liberais parturejaram e a que a Constituição de Cádiz, primeiro, e a de 1822, depois, deram voz.

× × × × ×

Os Supremos Tribunais de Justiça (seja qual for a designação concreta que têm nos vários países ocidentais) vão, assim, encimar a nova estrutura dos Tribunais que o liberalismo europeu emergente criou.
Mas o princípio inalienável da independência dos juízes terá (exceção feita aos países saxónicos) efeitos contraditórios na Europa continental: por um lado, ele impõe-se cada vez mais na consciência dos cidadãos como garante fundamental da imparcialidade dos juízes; por outro, origina a desconfiança da nova classe política liberal que a leva a fragmentar os Tribunais em orgânicas separadas num processo de longo prazo cujos efeitos ainda perduram.
Numa primeira fase, não se permitiu que os tribunais comuns julgassem da validade dos actos administrativos do estado sob o falso pretexto de que isso corresponderia a violar o princípio da separação de poderes; instalaram-se, então, tribunais próprios (os Tribunais administrativos) com uma matriz genética política acentuada para preservar a fidelidade política.
Numa segunda fase, e num processo de cariz idêntico, criaram-se os Tribunais constitucionais para julgar da conformidade constitucional dos actos legislativos; em ambos os casos optou-se, em regra, por formas de designação e legitimação desses juízes diversas das adoptadas para os juízes dos Tribunais comuns.
Apenas o modelo saxónico fugiu (como se disse) a esta moda europeia encabeçada pela França e secundada pela Alemanha.
Hoje, lentamente, alguns países tentaram corrigir parcialmente esse erro histórico; a Espanha é um deles, Portugal ainda não.
De qualquer modo, e para lá das marés do tempo e das variações da história, o que ficou gravado na memória dos povos é a ideia permanente de que os Supremos Tribunais são a instituição insubstituível para a defesa dos direitos individuais e das liberdades públicas nos países contemporâneos.
E isso faz parte, cada vez mais, do património cultural dos povos e dos países da nossa civilização.
Diria mesmo que faz parte, já, do património da Humanidade.


Luís António Noronha Nascimento
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal

quarta-feira, 14 de março de 2012

LIBERDADE RELIGIOSA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Duas britânicas proibidas de usar crucifixos nos respectivos locais de trabalho consideram-se vítimas de discriminação religiosa e recorreram ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos de Estrasburgo.
12 Março 2012
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Por:Dina Gusmão com agências








O Governo de Londres, porém, não apoia o recurso, alegando que, ao contrário de outras religiões, a cristã não obriga ao uso de símbolos. "Só aos cristãos é proibido expressar a sua fé. Não vou esconder a minha por Jesus. A British Airways permite o véu islâmico aos muçulmanos e os turbantes aos sikhs", afirma, revoltada, Nadia Eweida, assistente de bordo no aeroporto londrino de Heathrow, onde foi recriminada por usar um crucifixo. O caso aconteceu em 2006, e desde então Nadia não tem parado de lutar pelo que clama ser o seu direito à liberdade de expressão religiosa. Há um ano avançou para o Tribunal Europeu de Direitos Humanos de Estrasburgo.

A assistente de bordo não está sozinha nesta guerra. Com ela está a enfermeira Shirley Chaplin, com queixas e reivindicações em tudo semelhantes: o direito a usar símbolos religiosos, mesmo quando estes não são obrigatórios para a fé que se professa.

sábado, 10 de março de 2012

AS GRANDES DECISÕES DOS TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS EUROPEUS*

1
AS GRANDES DECISÕES
DOS TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS EUROPEUS*
LES GRANDES DECISIONS
DES COURS CONSTITUTIONNELLES EUROPEENNES
PORTUGAL
Jorge Miranda
José de Melo Alexandrino
_____________
* O presente texto, que reúne extractos e comentários doutrinários a alguns dos mais importantes acórdãos
do Tribunal Constitucional português, corresponde integralmente à versão portuguesa do estudo preparado
pelos Professores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Jorge Miranda e José de Melo
Alexandrino, para a obra colectiva (em curso de edição) “Les Grandes Décisions des Cours Constitutionnelles
Européennes”, organizada e coordenada pelos Professores franceses Didier Maus e Pierre Bon.
2
I – PRINCÍPIOS FONDAMENTAIS DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO
1.1. Rendimento social de inserção
Acórdão n.º 509/2002, de 19 de Dezembro
(AcTC, vol. 54, p. 19-53)
Palavras-chave: rendimento mínimo; direito ao mínimo de existência condigna; Estado de direito
democrático; dignidade da pessoa humana; margem de autonomia do legislador; princípio democrático;
proibição do retrocesso.
[Em processo de fiscalização preventiva, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade
de um decreto da Assembleia da República que revogava o rendimento mínimo garantido (criado por um
Governo socialista em 1996), substituído por um “rendimento social de inserção”. O novo regime reconhecia
a titularidade do rendimento social de inserção apenas às pessoas com idade igual ou superior a 25 anos, ao
passo que o regime anterior reconhecia o direito à prestação do rendimento mínimo aos indivíduos com
idade igual ou superior a 18 anos.
Na sequência da pronúncia do Tribunal Constitucional, o decreto do Parlamento foi reformulado, vindo
então a ser publicada a Lei n.º 13/2003, de 21 de Maio – posteriormente alterada pela Lei n.º 45/2005, de 29
de Agosto.]
____________
Pronúncia do Plenário do Tribunal Constitucional. . . .
9 – Embora com importantes e significativos matizes, pode-se afirmar que a
generalidade da doutrina converge na necessidade de harmonizar a estabilidade da
concretização legislativa já alcançada no domínio dos direitos sociais com a liberdade de
conformação do legislador. E essa harmonização implica que se distingam as situações.
Aí, por exemplo, onde a Constituição contenha uma ordem de legislar,
suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível «determinar, com
segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade» (cfr.
Acórdão n.º 474/02 [...]), a margem de liberdade do legislador para retroceder no grau de
protecção já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá fazer na estrita medida
em que a alteração legislativa pretendida não venha a consequenciar uma
inconstitucionalidade por omissão – e terá sido essa a situação que se entendeu
verdadeiramente ocorrer no caso tratado no já referido Acórdão n.º 39/84.
Noutras circunstâncias, porém, a proibição do retrocesso social apenas pode
funcionar em casos-limite, uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática,
sob pena de se lhe reconhecer uma subsistência meramente formal, inculca a revisibilidade
3
das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o carácter de opções
legislativas fundamentais.
Este Tribunal já teve, aliás, ocasião de se mostrar particularmente restritivo nesta
matéria, pois que no Acórdão n.º 101/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., págs.
389-390), parece ter considerado que só ocorreria retrocesso social constitucionalmente
proibido quando fossem diminuídos ou afectados «direitos adquiridos», e isto «em termos
de se gerar violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no
âmbito económico, social e cultural», tendo em conta uma prévia subjectivação desses
mesmos direitos.
. . . . Por outro lado, o diploma em que se insere a norma questionada não procede a
uma pura e simples eliminação da prestação de segurança social destinada a assegurar o
direito a um mínimo de existência condigna, mas apenas a uma reformulação do seu
âmbito de aplicação. É bem verdade que um certo grupo de cidadãos foi dele excluído para
o futuro; todavia, nessa perspectiva, só se poderia falar, em bom rigor, em violação da
proibição do retrocesso social pressupondo-se, desde logo, que uma tal exclusão colidiria
com o conteúdo mínimo desse direito.
. . . .
13 – Este Tribunal, na esteira da Comissão Constitucional (cfr. Acórdão n.º 479,
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 327, Junho de 1983, pág. 424 e segs.), tem vindo a
reconhecer, embora de forma indirecta, a garantia do direito a uma sobrevivência minimamente
condigna ou a um mínimo de sobrevivência, seja a propósito da actualização das pensões por
acidentes de trabalho (Acórdão n.º 232/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19.º vol., pág.
341), seja a propósito da impenhorabilidade de certas prestações sociais (designadamente,
do rendimento mínimo garantido – Acórdão n.º 62/02, Diário da República, II Série, de 11 de
Março de 2002), na parte em que estas não excedam um rendimento mínimo de subsistência ou o
mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna (cfr. Acórdão n.º 349/91, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 19º vol., pág. 515; Acórdão n.º 411/93, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 25.º vol., pág. 615; Acórdão n.º 318/99, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43.º
vol., pág. 639; e Acórdão n.º 177/02, Diário da República, I Série-A, de 2 de Julho de 2002).
. . . .
[Citando o Acórdão n.º 62/02] Importa, porém, distinguir entre o reconhecimento de
um direito a não ser privado do que se considera essencial à conservação de um
rendimento indispensável a uma existência minimamente condigna, como aconteceu nos
referidos arestos, e um direito a exigir do Estado esse mínimo de existência condigna,
designadamente através de prestações, como resulta da doutrina e da jurisprudência alemãs.
É que esta última considera que «do princípio da dignidade humana, em conjugação com o
princípio do Estado social decorre uma pretensão a prestações que garantam a existência»,
sendo de incluir na garantia do mínimo de existência «as prestações sociais suficientes», nos
termos da legislação sobre auxílio social [...].
. . . .
4
Daqui se pode retirar que o princípio do respeito da dignidade humana, proclamado
logo no artigo 1.º da Constituição e decorrente, igualmente, da ideia de Estado de direito
democrático, consignado no seu artigo 2.º, e ainda aflorado no artigo 63.º, n.os 1 e 3, da
mesma CRP, que garante a todos o direito à segurança social e comete ao sistema de
segurança social a protecção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de
meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, implica o reconhecimento do
direito ou da garantia a um mínimo de subsistência condigna.
Todavia, o legislador [...] goza de uma larga margem de liberdade conformadora,
podendo decidir «quanto aos instrumentos e ao montante do auxílio», sem prejuízo de
dever assegurar sempre o «mínimo indispensável». Essa é uma decorrência do princípio
democrático, que supõe a possibilidade de escolhas e de opções que dê significado ao
pluralismo e à alternância democrática, embora no quadro das balizas constitucionalmente
fixadas, devendo aqui harmonizar-se os pilares em que, nos termos do artigo 1.º da
Constituição, se baseia a República Portuguesa: por um lado, a dignidade da pessoa
humana e, por outro lado, a vontade popular expressa nas eleições.
. . . .
15 – Consequentemente, importa concluir que a norma em apreciação vem atingir o
conteúdo mínimo do direito a um mínimo de existência condigna, postulado, em primeira
linha, pelo princípio do respeito pela dignidade humana [...], princípio esse consagrado pelo
artigo 1.º da Constituição e decorrente, igualmente, da ideia de Estado de Direito
democrático, consignado no seu artigo 2.º, e ainda aflorado no artigo 63.º, n.os 1 e 3, da
mesma CRP.
COMENTÁRIO
Constituindo um verdadeiro acto de síntese de política constitucional (para utilizar a
expressão de Bruce Ackerman), a presente decisão, cuja relevância é múltipla (quer em
matéria de princípios fundamentais, quer de direitos fundamentais, quer de justiça
constitucional), tem, por um lado, um lastro histórico a precedê-la e deu lugar, por outro, a
uma larga e variada reflexão doutrinária1.
A despeito desse carácter transversal, o comentário estará cingido à identificação dos
princípios fundamentais da Constituição, ao percurso jurisprudencial do direito
fundamental ao mínimo de existência condigna e à caracterização constitucional do
princípio da igualdade; em momento posterior, dar-se-á nota do tratamento concedido ao
problema da proibição do retrocesso.
1 Jorge Miranda, «Portugal», in AIJC, XVIII, 2002, p. 761 ss.; José Carlos Vieira de Andrade, «O “direito
ao mínimo de existência condigna” como direito fundamental a prestações estaduais positivas – Uma decisão
singular do Tribunal Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, n.º 1 (2004), p. 4-29; Carlos Blanco de
Morais, Justiça Constitucional – tomo II, O contencioso constitucional português entre o modelo misto e a tentação do sistema
de reenvio, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 112 ss.; José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de
direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, vol. II – A construção dogmática, Coimbra, Almedina, 2006, p.
372 ss., 567 ss., 626 ss., com amplas indicações.
5
O princípio que, antes de qualquer outro, parece resumir, segundo o Tribunal
Constitucional, a Constituição da República Portuguesa (abreviadamente, CRP) é o
princípio do Estado de direito democrático2. Como se lê neste acórdão (tal como em todos
aqueles que se debruçaram sobre o tema do mínimo de existência condigna), o princípio
da dignidade da pessoa humana decorre da ideia de Estado de direito democrático3. Deste
modo, ao incorporar a dignidade da pessoa humana (Acórdão n.º 105/90), o Estado de
Direito democrático envolve necessariamente um leque muito alargado de realidades,
designadamente os direitos fundamentais e todos os princípios e regras constituintes desse
subsistema.
Um segundo aspecto a ressaltar neste acórdão do rendimento social de inserção reside no
facto de nele serem expressamente identificadas as duas esferas basilares da Constituição: a
dignidade da pessoa humana e a vontade popular. E a natureza da interacção entre essas
duas forças fica bem demonstrada, no caso concreto: se o princípio democrático supõe a
revisibilidade das opções políticas fundamentais (dando significado ao pluralismo e à
alternância democrática), o princípio da dignidade da pessoa humana impõe a satisfação de
um mínimo necessário para que cada pessoa tenha uma existência condigna; se do princípio
do respeito pela dignidade humana decorre, para o Tribunal, o pleno reconhecimento de
um direito fundamental (implícito na estrutura e no texto da Constituição) ao mínimo de
existência condigna (na sua vertente negativa e, depois deste acórdão, numa vertente
prestacional), constitui exigência da vontade popular a recusa da afirmação de um princípio
autónomo da proibição do retrocesso social, que pudesse funcionar automaticamente (sem
proceder a diferenciações básicas). Em síntese, se o respeito pela dignidade humana impõe
a fixação de um novo parâmetro material, o respeito pela democracia impõe a flexibilidade
(quanto às opções, quanto ao tipo de concretização e quanto à própria margem para
retroceder).
Seguindo uma técnica de pequenos passos (de que dá nota a própria decisão) e sob a
influência de certas raízes históricas, o Tribunal Constitucional português veio, em
sucessivas fases4, a dar corpo a um verdadeiramente novo direito fundamental: o “direito ao
mínimo de existência condigna”.
Tendo sofrido alguns reparos críticos na doutrina, esta linha jurisprudencial teve a sua
projecção máxima nesse ano de 2002 (com os Acórdãos n.os 62/2002, 177/2002 e
509/2002). A partir daí, mesmo no domínio onde a mesma se tinha apresentado mais
florescente (o da impenhorabilidade de salários e de prestações sociais), ela começou a
declinar.
2 Sobre esta matéria e em atento diálogo com a jurisprudência constitucional, Jorge Reis Novais, Os
princípios constitucionais estruturantes da República portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004.
3 Em modo crítico, Jorge Miranda, «O Tribunal Constitucional em 1999», in O Direito, ano 132.º, I-II
(2000), p. 262; sobre esta fenomenologia, J. Alexandrino, A estruturação do sistema..., cit., vol. II, p. 567 ss.
4 Sobre este processo, J. C. Vieira de Andrade, «O “direito ao mínimo de existência condigna”..., cit., p. 4
ss.
6
Esse declínio já se pressentia nos votos dissidentes neste Acórdão n.º 509/2002 e no
precedente Acórdão n.º 177/2002, tendo vindo mais tarde a agudizar-se com a
desvinculação da 2.ª Secção (no Acórdão n.º 657/2006) face ao rumo que parecia estar
traçado nos Acórdãos n.os 177/2002 (do Plenário) e 96/2004 (da 1.ª Secção); chamado a
pronunciar-se sobre o conflito de jurisprudência entre as duas Secções, o Plenário do
Tribunal (no Acórdão n.º 107/2007, com 11 juízes a favor e dois vencidos) resolveu evitar
o problema5, alegando a falta de identidade das normas; mas, pelo facto de serem vencidos
nesta decisão os dois juízes dissidentes no Acórdão n.º 657/2006, é relativamente fácil de
entender o sentido da inflexão jurisprudencial6.
Uma ulterior comprovação revela-se em três acórdãos recentes, onde se discutiu a
constitucionalidade da norma do artigo 15.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar, na parte em que
permite a perda do direito à pensão de aposentação pelo período de três anos. Em duas
decisões unânimes, uma da 3.ª secção (Acórdão n.º 442/2006) e outra da 1.ª Secção
(Acórdão n.º 518/2006), e numa decisão por maioria, da 2.ª Secção (Acórdão n.º 28/2007),
o Tribunal Constitucional concluiu pela não desconformidade constitucional da referida
norma, entendendo não estar aí violado o princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana. Em contextos distintos (como no Acórdão n.º 306/2005, relativo a alimentos
devidos a filhos menores), no entanto, a doutrina do direito ao mínimo de existência
continua a ser um elemento marcante na jurisprudência constitucional portuguesa.
Expressamente reconhecido como princípio estruturante da Constituição (Acórdãos
n.os 76/85, 186/90, 331/91, 436/2000, 403/2004, 528/2006), o princípio da igualdade
chegou mesmo a ser qualificado pelo Tribunal como valor supremo do ordenamento
(Acórdão n.º 400/91) e como referência primordial de todo o sistema constitucional (Acórdão
n.º 196/94), ainda que o significado dessas expressões seja essencialmente enfático.
Conceito relativo, relacional e histórico, que tem de ser construído atendendo aos
valores constitucionais no seu conjunto (Acórdão n.º 231/94), o princípio da igualdade
apresenta uma marcada multifuncionalidade: é um valor constitucional e um critério de
interpretação, tanto mais pela relação particular que assume com o princípio do Estado de
Direito (Acórdão n.º 480/89) e com a norma da dignidade da pessoa humana, de cuja
síntese acaba por ser corolário (Acórdão n.º 39/88); tem ainda um relação muito forte com
os princípios do Estado social (Acórdão n.º 289/92) e da solidariedade (declarações de
voto no Acórdão n.º 148/94); a pauta da igualdade desdobra-se, por sua vez, em sucessivos
direitos especiais de igualdade (Acórdão n.º 529/94), constituindo, por fim, um inevitável
critério de controlo (Acórdãos n.os 423/87, 1/97, 509/2002).
Três dos aspectos que sobressaem na jurisprudência constitucional, como temos
reconhecido, são a prevalência do entendimento da igualdade como princípio negativo, a
relativa contenção no julgamento dos critérios do legislador e a específica indagação de um
5 Talvez devido à iminente recomposição do Tribunal (que acabaria por acontecer em Abril de 2007,
com a substituição de 6 juízes).
6 Antecipando de algum modo esta evolução, J. Alexandrino, A estruturação do sistema..., cit., vol. II, p.
628.
7
“fundamento material suficiente” em caso de diferença de tratamento. Relativamente a este
último aspecto, tem sido, no entanto, criticada na doutrina a “insuficiente diferenciação das
diferenciações de tratamento” e, do mesmo modo, a insuficiência do critério normalmente
convocado da proibição do arbítrio.
1.2. Divórcio
Acórdão n.º 105/90, de 29 de Março
(AcTC, vol. 15, p. 357-370)
Palavras-chave: divórcio em caso de separação de facto; repúdio; princípio da dignidade da pessoa humana;
princípios abertos da Constituição; contenção do controlo jurisdicional.
[Num processo de divórcio, a recorrente questionou a norma do artigo 1785.º, n.º 2, do Código Civil,
entendendo que a mesma deveria ser interpretada restritivamente, em termos de, quando o divórcio for
requerido pelo cônjuge que deu causa à separação, o divórcio não poder ser decretado sem o consentimento
do cônjuge inocente. Isto porque repugnaria ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana o
deixar decretar-se o divórcio, em casos de separação de facto, contra a vontade de quem não causou a
separação. Tinha acrescentado ainda nas instâncias que a admissão de uma tal solução legal implicaria ter-se
«restaurado no ordenamento jurídico português o repúdio, regredindo-se, assim, a épocas há séculos deixadas
atrás pelo progresso humano».]
_____________
Julgamento da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional. . . .
8 – . . . . Não se nega, decerto, que a «dignidade da pessoa humana» seja um valor
axial e nuclear da Constituição portuguesa vigente e, a esse título, haja de inspirar e
fundamentar todo o ordenamento jurídico. Não se trata efectivamente – na afirmação que
desse valor se faz logo no artigo 1.º da Constituição – de uma mera proclamação retórica,
de uma simples «fórmula declamatória», despida de qualquer significado jurídiconormativo;
trata-se, sim, de reconhecer esse valor – o valor eminente do homem enquanto
“pessoa”, como ser autónomo, livre e (socialmente) responsável, na sua «unidade
existencial de sentido» – como um verdadeiro princípio regulativo primário da ordem jurídica,
fundamento e pressuposto de «validade» das respectivas normas». E, por isso, se dele não
são dedutíveis «directamente», por via de regra, «soluções jurídicas concretas», sempre as
soluções que naquelas (nas «normas» jurídicas) venham a ser vazadas hão-de conformar-se
com um tal princípio, e hão-de poder ser controladas à luz das respectivas exigências [...].
Quer tudo isto dizer – em suma – que o princípio da «dignidade da pessoa humana» é
8
também seguramente, só por si, padrão ou critério possível para a emissão de um juízo de
constitucionalidade sobre normas jurídicas.
Simplesmente, não pode também deixar de reconhecer-se que a ideia de «dignidade
da pessoa humana», no seu conteúdo concreto – nas exigências ou corolários em que se
desmultiplica –, não é algo de puramente apriorístico [...] e ou a-histórico, mas algo que
justamente se vai fazendo (e que vai progredindo) na história, assumindo, assim, uma
dimensão eminentemente «cultural» [...].
É que se o conteúdo da ideia de dignidade da pessoa humana é algo que
necessariamente tem de concretizar-se histórico-culturalmente, já se vê que no Estado
moderno – e para além das projecções dessa ideia que encontrem logo tradução ao nível
constitucional em princípios específicos da lei fundamental (maxime, os relativos ao
reconhecimento e consagração dos direitos fundamentais) – há-de caber primacialmente ao
legislador essa concretização: especialmente vocacionado, no quadro dos diferentes órgãos
de soberania, para a «criação» e a «dinamização» da ordem jurídica, e democraticamente
legitimado para tanto, é ao legislador que fica, por isso, confiada, em primeira linha, a tarefa
ou o encargo de, em cada momento histórico, «ler», traduzir e verter no correspondente
ordenamento aquilo que nesse momento são as decorrências, implicações ou exigências dos
princípios «abertos» da Constituição (tal como, justamente, o princípio da «dignidade da
pessoa humana»). E daí que – indo agora ao ponto – no controlo jurisdicional da
constitucionalidade das soluções jurídico-normativas a que o legislador tenha, desse modo,
chegado (no controlo, afinal, do modo como o legislador preencheu o espaço que a
Constituição lhe deixou, precisamente a ele, para preencher) haja de operar-se com uma
particular cautela e contenção. Decerto, assim, que só onde ocorrer uma real e inequívoca
incompatibilidade de tais soluções com o princípio regulativo constitucional que esteja em
causa – real e inequívoca, não segundo o critério subjectivo do juiz, mas segundo um
critério objectivo, como o será, por exemplo (e para usar aqui uma fórmula doutrinária
expressiva), o de «todos os que pensam recta e justamente» –, só então, quando for
indiscutível que o legislador, afinal, não «concretizou», e antes «subverteu», a matriz
axiológica constitucional por onde devia orientar-se, será lícito aos tribunais (e ao Tribunal
Constitucional em particular) concluir pela inconstitucionalidade das mesmas soluções.
E, se estas considerações são em geral pertinentes, mais o serão ainda quando na
comunidade jurídica tenham curso perspectivas diferenciadas e pontos de vista díspares e
não coincidentes sobre as decorrências ou implicações que de um princípio «aberto» da
Constituição devem retirar-se para determinado domínio ou para a solução de determinado
problema jurídico. Nessa situação sobretudo – em que haja de reconhecer-se e admitir-se
como legítimo, na comunidade jurídica, um «pluralismo» mundividencial ou de concepções
– sem dúvida cumprirá ao legislador (ao legislador democrático) optar e decidir.
Ora, crê-se que quanto vem de expor-se é já suficiente para dever arredar-se a
pretendida inconstitucionalidade da norma do artigo 1785.º, n.º 2, primeira parte, do
Código Civil, por violação do princípio constitucional da «dignidade da pessoa humana».
9
COMENTÁRIO
É nesta importante decisão que são fixados dois elementos fundamentais da
caracterização jurídico-constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana: o de
que se trata de um princípio aberto, não-apriorístico, eminentemente cultural e
historicamente concretizado; e o de que ele se encontra concretizado na Constituição como
valor, ideia e princípio, mas que só em casos extremos, e segundo um critério de evidência,
poderá funcionar como regra para a emissão de um juízo de inconstitucionalidade. Todavia,
apesar dessa reconhecida marca de leading case e ainda que não tenha sido infirmado
posteriormente, a judiciosa doutrina deste aresto tem permanecido de certo modo na
sombra.
Na difícil tarefa de caracterização do princípio da dignidade da pessoa humana, o
Tribunal Constitucional não se mostra particularmente vinculado à inspiração kantiana que
subjaz à fórmula do objecto (assim, todavia, e entre outros, o Acórdão n.º 144/2004), adoptada
pelo seu congénere alemão, parecendo privilegiar a conexão da dignidade da pessoa
humana com a igualdade, com a democracia social e com a teleologia do bem-estar
económico e social (Acórdão n.º 509/2002).
Essa articulação abrangente da dignidade está bem patente numa passagem famosa1
do Acórdão n.º 39/88, onde se escreveu que o princípio da igualdade «é um corolário da
igual dignidade de todas as pessoas, sobre a qual gira, como em seu gonzo, o Estado de
Direito democrático (cfr. artigos 1.º e 2.º da Constituição)».
Quanto às funções do princípio da dignidade da pessoa humana, ele assume na CRP
uma função matricial (como no caso 1.1), uma função restritiva (caso 1.3), uma função integradora
(caso 1.1) e diversas funções instrumentais (como, entre outros, nos Acórdãos n.os 25/84,
67/97, 192/2001 ou 155/2004)2.
1.3. Lenocínio
Acórdão n.º 144/2004, de 10 de Março
(Diário da República, 2.ª série, n.º 42, de 19 de Abril de 2004, p. 6082-2873)
Palavras-chave: favorecimento à prostituição; Direito e Moral; actividades económicas; protecção da
autonomia e da dignidade; igual dignidade da pessoa humana.
[Estava em apreciação, num recurso em fiscalização concreta, a constitucionalidade da incriminação do
lenocínio, prevista no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal.
1 Franck Moderne, «La dignité de la personne comme principe constitutionnel dans les Constitutions
portugaise et française», in Perspectivas Constitucionais, organização de Jorge Miranda, vol. I, Coimbra, Coimbra
Editora, 1996, p. 216, nota 57.
2 José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa,
vol. II – A construção dogmática, Coimbra, Almedina, 2006, p. 570 ss.
10
Em acórdão unânime da Secção, não foi censurada a incriminação em causa.]
_____________
Julgamento da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional. . . .
6 – Não se terá, aqui, de responder à questão geral sobre se o Direito Penal pode,
constitucionalmente, tutelar bens meramente morais, questão que não pode ser resolvida
sem o esclarecimento prévio do que se entende por bens puramente morais e que não pode
deixar de tomar em consideração que há valores e bens tidos como morais e que relevam,
inequivocamente, no campo do Direito. [...]
Assim, tanto quem procure em valores morais a legitimação do Direito, como quem
acentue a distinção entre Moral e Direito, reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e
valores que participam das duas ordens normativas [...]. Mesmo as posições mais favoráveis
à autonomia do Direito não negam que possam existir valores morais tutelados também
pelo Direito, segundo a lógica deste e, por força dos seus critérios [...]. Porém, questão
prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber se a norma do artigo
170.º, n.º 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e
bens consagrados constitucionalmente, não susceptíveis de protecção pelo Direito,
segundo a Constituição portuguesa.
Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à
norma do artigo 170.º, n.º 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na
história, na cultura e nas análises sobre a sociedade segundo a qual as situações de
prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são
situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída [...]. Tal perspectiva não
resulta de preconceitos morais, mas do reconhecimento de que uma ordem jurídica
orientada por valores de justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser
mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades
cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja
a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de
outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o
Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. [...]
É claro que a esta perspectiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e
uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico
das análises empíricas que retratam o “mundo da prostituição” [...]. Mas tal horizonte de
compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade,
valores da pessoa que estão directamente em causa nas condutas que favorecem,
organizam ou meramente se aproveitam da prostituição.
. . . .
7 – Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por objecto a
específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende,
11
de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de actividade
económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente
associados à protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 47.º, n.º
1, e 61.º, n.º 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como
objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a
integridade moral dos cidadãos [artigo 59.º, n.º 1, alíneas b) e c), ou n.º 2, alínea c), da
Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47.º, n.º 1, da
Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de
perspectivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das
Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001, Processo n.º 268/99), segundo a
qual a prostituição pode ser encarada como actividade económica na qualidade de trabalho
autónomo [...]. Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de actividade das
pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma
discriminação quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí
não decorrendo qualquer consequência para a licitude das actividades de favorecimento à
prostituição.
COMENTÁRIO
O convincente1 caso do lenocínio (relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma)
começa por equacionar as relações entre Moral e Direito, reconhecendo claramente que
existem bens e valores que participam das duas ordens normativas.
É, antes de mais, relativamente à dignidade da pessoa humana que o acórdão assume
duas articulações fundamentais: por um lado, a dignidade é reconduzida ao esquema
kantiano, segundo o qual a pessoa, por ser um fim em si mesma, não pode ser usada como
instrumento ou meio (fórmula do objecto); por outro lado, a dignidade da pessoa é
identicamente associada à igualdade, ou melhor, à “igual dignidade de todas as pessoas”,
aqui entendida como fundamento do Estado português.
Ora, na economia da decisão, a dignidade da pessoa humana e os valores da pessoa
que lhe estão associados (as ideias de autonomia e liberdade) vão desempenhar duas
importantes funções argumentativas. A primeira é a de satisfazerem a condição de bem,
valor, ou interesse constitucional atendível (reserva constitucional de bem) para efeitos da
respectiva protecção penal. A segunda é a de lhes ser reconhecida a função de limite dos
direitos, liberdades e garantias. No caso, de limite constitucional indirecto, a determinar
pelo legislador, no momento na configuração do conteúdo da liberdade de profissão ou da
liberdade de iniciativa económica, mesmo que por recurso à intermediação da norma penal.
Podendo ser considerada uma decisão por valores2, é notório neste caso que o
reconhecimento ou a (re)construção constitucional dos valores não tem na sua base um
1 Jorge Miranda, «O Tribunal Constitucional em 2004», in O Direito, ano 137.º (2005), I, p. 199.
12
suporte puramente ontológico, mas antes considerações sociológicas e culturais, aliadas a
uma leitura sistemática da Constituição.
Porém, se por aí não parece espreitar nenhum perigo de regresso a ultrapassadas
concepções da doutrina dos valores, este tipo de pronúncia denota algum afastamento
relativamente à regra de contenção enunciada no precedente Acórdão n.º 105/90, segundo
a qual só haveria inconstitucionalidade quando estivesse em causa uma real e inequívoca
incompatibilidade das soluções e só quando fosse indiscutível (segundo um critério
objectivo) a subversão da matriz axiológica constitucional.
Não deixou, por isso, de ser notado na doutrina que pode haver perfeitamente
constelações de casos em que o favorecimento da prostituição pode afinal achar protecção
nesses mesmos valores da autonomia e da liberdade. Ainda assim, as eventuais situações de
fronteira podem ser enquadradas através de uma devida interpretação conforme à
Constituição da norma do Código Penal.
Ainda em relação a decisões por valores, há algumas notas dignas de realce na
jurisprudência do Tribunal Constitucional. A primeira é a de que jamais o Tribunal
Constitucional fez apelo a uma ordem constitucional de valores fechada e hierárquica; a
segunda é a de que, contrariamente ao que parece verificar-se, por exemplo, na experiência
alemã, a argumentação por valores acentua-se nos anos mais recentes e não na primeira
fase; a terceira nota é para assinalar que o Tribunal Constitucional português não tem por
hábito referir-se a um princípio ou valor, isoladamente considerado, preferindo quase
sempre fazer apelo a conglomerados de princípios e disposições constitucionais (relevando
assim, correctamente, texto e estrutura da Constituição), o que não obsta à invocação,
como acontece neste acórdão, da paradigmática fórmula de síntese da “igual dignidade” da
pessoa humana (ou da fórmula, ainda mais vasta, do Estado de direito democrático, como
sucede no caso do rendimento social de inserção).
A doutrina do aresto foi, também por unanimidade, expressamente retomada nos
Acórdãos n.os 196/2004, 303/2004 e 170/2006. Mais recentemente, no Acórdão n.º
396/2007, a Conselheira Maria João Antunes dissentiu da maioria, alegando que na norma
do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na versão posterior a 1998, não é cumprido o
critério segundo o qual o que justifica a inclusão de certas situações no Direito penal é a
subordinação a uma lógica de estrita necessidade das restrições (artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição), o que pressupõe a censurabilidade imanente das condutas.
2 Já foi notado o paralelo entre este acórdão e certas decisões da Cour Suprême do Canadá, como o caso
R. c. Butler, apreciado em 1992 (cfr. José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e
garantias na Constituição portuguesa, vol. I – Raízes e contexto, Coimbra, Almedina, 2006, p. 259, nota 655).
13
II – DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1. INFARMED
Acórdão n.º 254/99, de 4 de Maio
(AcTC, vol. 43, p. 365-392)
Palavras-chave: acesso a documentos administrativos; direitos de natureza análoga; interesses económicos;
conflitos de direitos; limites a posteriori; autorização das restrições; restrições implícitas; ponderação de bens.
[Uma empresa farmacêutica (Astra Portuguesa, Lda.) requereu nos tribunais administrativos a intimação do
Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED), para que lhe fosse dado acesso a um conjunto de
documentos administrativos.
Tendo obtido provimento parcial do seu recurso junto do Supremo Tribunal Administrativo, a empresa
interpôs então recurso de constitucionalidade, alegando que, com a interpretação que lhes foi dada, os artigos
17.º do Decreto-Lei n.º 72/91, de 8 de Fevereiro, 10.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, 62.º do Código do
Procedimento Administrativo e 82.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos são inconstitucionais,
por violação dos artigos 268.º, n.os 1, 2, 4 e 5, e do artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição.
O problema central versado neste importante acórdão prende-se com a resposta à questão de saber se podem
ser restringidos, a que título e com que fundamento, os direitos fundamentais que não estejam
acompanhados, ou na parte em que o não estejam, de uma autorização expressa de restrição.
Ainda que reconhecendo ao direito à informação administrativa a natureza de direito fundamental (implícito)
de natureza análoga (artigo 17.º da Constituição), com cinco votos de vencido, o Tribunal não deu
provimento ao recurso de constitucionalidade, na medida em que admitiu a existência de outros limites (além
dos expressamente considerados no preceito constitucional) e de outros interesses relevantes a ponderar,
confirmando nessa medida a decisão do Supremo Tribunal Administrativo.]
____________
Julgamento do Plenário do Tribunal Constitucional. . . .
6 – Em causa está o direito de acesso, na forma de direito de consulta e de direito de
obter certidão, do detentor de interesse legítimo no conhecimento dos elementos que lhe
permitam usar de meios administrativos ou contenciosos a documentos de um processo
administrativo que possam ser relevantes para tal fim.
Esse direito não está consagrado especificamente na Constituição. A recorrente
pretende que está implícito no direito dos administrados, consagrado nos n.os 4 e 5 do
artigo 268.º da Constituição, a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses
legalmente protegidos, e nessa medida tem razão. A tutela jurisdicional seria muitas vezes
ineficaz sem um direito instrumental de quaisquer pessoas que tenham interesse legítimo à
14
informação dos elementos que possam ser relevantes e que constem de processo
administrativo.
. . . .
7 – . . . . [Todos] os direitos de informação frente à Administração Pública
consagrados no artigo 268.º estão limitados por outros direitos ou bens
constitucionalmente protegidos que com eles conflituam [...]. Tais limites, ditos a posteriori,
por se determinarem depois da determinação do conteúdo do direito por via de
interpretação (a qual poderá determinar limites desse conteúdo), sempre seriam admissíveis,
quer no direito de informação procedimental do n.º 1, quer no direito de informação
instrumental do direito de tutela jurisdicional. [...] Ora não há nenhuma razão para que
limites do mesmo género não existam no caso do direito de acesso do n.º 2. É que se trata
de um género de limites que existe qualquer que seja o modo de definição de um direito na
Constituição, porque resultam simplesmente da existência de outros direitos ou bens,
igualmente reconhecidos na Constituição e que em certas circunstâncias com eles
conflituam, bem como da possibilidade de conflitos em certas circunstâncias entre direitos
idênticos na titularidade de diferentes pessoas. Os conflitos não podem ser evitados a não
ser pela previsão na Constituição dessas circunstâncias e pela consequente transformação
dos elementos do conflito em elementos da definição dos direitos ou bens constitucionais
em jogo. Ora a previsão exaustiva das circunstâncias que podem dar lugar a conflitos deste
tipo é praticamente impossível pela imprevisibilidade das situações de vida e pelos limites
da linguagem que procura prevê-las em normas jurídicas, além de que a Constituição nunca
pretendeu regular pormenorizadamente, ou tão exaustivamente quanto possível, os direitos
que consagra. Estas considerações aplicam-se a todos os direitos fundamentais
reconhecidos na Constituição. Todos esses direitos podem ser limitados ou comprimidos
por outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, sem excluir a possibilidade de
conflitos entre direitos idênticos na titularidade de diferentes pessoas (pense-se, quanto ao
direito à vida, no regime legal de legítima defesa e do conflito de deveres, e no dever
fundamental de defesa da Pátria – artigo 276.º, n.º 1, da Constituição), sendo sempre
necessário fundamentar a necessidade da limitação ou compressão quando ela não se
obtém por interpretação das normas constitucionais que regulam esses direitos.
. . . .
9 – É claro que as considerações antecedentes só são relevantes no pressuposto de
que os direitos de acesso à informação administrativa consagrados no artigo 268.º são
direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias enunciados no
título II da Constituição (artigo 17.º da Constituição), para os efeitos da aplicação do
regime do artigo 18.º. O Tribunal já afirmou o pressuposto nos acórdãos n.os 177/92 e
234/92 (Acórdãos cit., 22.º vol., pp. 401, 603), a isso não obstando certamente a dimensão
institucional desses direitos, especialmente no caso do princípio do arquivo aberto do n.º 2
do artigo 268.º dirigido aos cidadãos ([...]).
10 – Um segundo pressuposto da aplicação do regime do artigo 18.º é ainda o de que
os limites ao direito de informação de que se trata no caso não estejam desde logo
15
determinados à partida pela definição constitucional do objecto do direito. Ora, a definição
constitucional do objecto de um direito fundamental implica por vezes limites que
resultam, é certo, da possibilidade de situações de conflito com outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, mas que já integram, tendo em conta o elemento histórico
da interpretação, o próprio sentido das palavras que definem o direito. “Exprimir e divulgar
livremente o seu pensamento” (artigo 37.º, n.º 1) dir-se-á, significa coisa diferente de
“difamar” ou “caluniar”, ou mais geralmente, “mentir” ou “ofender” (excluindo o uso de
expressões ofensivas do domínio de protecção do direito, cfr. o Acórdão n.º 81/84,
Acórdãos cit., 4.º vol., p. 233).
. . . .
Em geral, sempre que a solução de um conflito de direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos se faça pela proibição do exercício de um direito em certas
circunstâncias, seja a proibição explícita, implícita ou obtida por remissão, têm justificação
as cautelas constitucionais contra as leis restritivas. Ora na hipótese em crise trata-se de
justificar constitucionalmente uma proibição de acesso a documentos que interessam ao
titular do direito à tutela jurisdicional para este mesmo efeito. Têm todo o cabimento as
cautelas constitucionais. [A fórmula aqui utilizada já transparecia no Acórdão n.º 177/92 e
virá a ser expressamente retomada no acórdão n.º 136/2005.]
. . . .
12 – Ora há que reconhecer que na hipótese dos autos há um conflito entre o direito
à informação instrumental do direito de tutela jurisdicional, invocado pela recorrente, por
um lado, e os direitos ao segredo comercial ou industrial, de autor ou de propriedade
industrial e o interesse no respeito das regras de leal concorrência, por outro lado, que o
director do INFARMED considera eventualmente na titularidade da pessoa detentora da
autorização de introdução no mercado de certo medicamento. A decisão do Supremo
Tribunal Administrativo aqui recorrida considerou que os direitos por último referidos se
reconduzem ao direito de propriedade (artigo 62.º, n.º 1 da Constituição). [...] Quanto à
relevância dos interesses económicos por último referidos é bem claro que o desrespeito
sistemático dos direitos de sigilo comercial e industrial dos produtores de produtos
farmacêuticos poderia conduzir não só a uma grave perturbação das regras da concorrência
neste sector de economia privada, como também a uma redução drástica do acesso dos
consumidores às inovações do mercado internacional de produtos farmacêuticos, com
prejuízo da qualidade dos bens e serviços consumidos (artigo 60.º, n.º 1) senão do direito à
protecção da saúde (artigo 64.º, n.º 1). Do outro lado da situação de conflito, o lado da
recorrente, há que ponderar em concurso, os direitos de autor ou de propriedade industrial
a fazer eventualmente valer em juízo, que chamam também à colação as mesmas regras de
leal concorrência em economia de mercado, mas também os interesses dos consumidores e
da saúde na fiscalização da qualidade dos produtos farmacêuticos, dos seus perigos tóxicos
e da sua aptidão clínica.
16
COMENTÁRIO
No vasto universo do sistema de direitos fundamentais da Constituição portuguesa1,
um dos domínios de maior dificuldade jurídico-constitucional e teórica é sem dúvida o das
restrições, dificuldade potencialmente agravada pela singular exigência feita no artigo 18.º,
n.º 2, da Constituição, segundo o qual a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos
casos expressamente previstos na Constituição.
Tendo sido dado já como paralelo da sentença do Tribunal Constitucional Federal
alemão da “Recusa à prestação do serviço militar” (BVerfGE, 28, 261)2, o Acórdão n.º
254/99 (de que foi relator o Conselheiro José de Sousa e Brito) constitui um marco
inquestionável, designadamente ao nível da racionalidade da justificação das restrições e da
exigência do respectivo controlo. Pode mesmo dizer-se que há um período anterior e um
período posterior ao caso INFARMED: antes dele, o Tribunal não apenas evitava, na maior
parte dos casos, a dificuldade do artigo 18.º, n.º 2, como se socorria dos mais diversos,
contrastantes e inconciliáveis mecanismos para salvar as incursões legislativas no domínio
dos direitos fundamentais; depois dele, mesmo quando o não refira expressamente, há
sempre o padrão de justificação das restrições aí defendido e deverá existir sempre o
cuidado em evitar a fuga ao correspondente regime constitucional.
Na sua essência a doutrina do acórdão pode resumir-se em poucas palavras:
independentemente da reserva de que os direitos fundamentais estejam acompanhados, o
legislador estará sempre habilitado (ainda que em moldes diferenciados) a antecipar,
prevenir e regular a solução de conflitos e a compatibilizar os valores em presença; deste
modo, a restringibilidade dos direitos fundamentais não deriva de operações de exclusão a
priori, mas da necessidade de solucionar, a posteriori e constitutivamente, colisões derivadas
da inserção comunitária e da interacção entre as diversas esferas jurídicas3; em terceiro
lugar, é decisivo que todo o evento que afecte desfavoravelmente a protecção
jusfundamental oferecida por um direito fundamental possa ser objecto de controlo, não se
podendo furtar aos requisitos materiais do Estado de Direito.
Antecipado por diversas pronúncias – como os Acórdãos n.os 177/92, 289/92,
113/97 ou 288/98 (referendo ao aborto) – , este claro leading case seria designadamente
retomado nos Acórdãos n.os 248/2000, 1/2001, 723/2004, 136/2005 e 155/2007 (recolha
coactiva de substâncias biológicas).
Merece particular menção o último destes arestos (o Acórdão n.º 155/2007) que,
antes de reiterar os termos do Acórdão n.º 254/99, começa por sistematizar os requisitos a
que devem obedecer as restrições:
1 Sobre esta matéria, com uma leitura sistemática e actualizada da jurisprudência constitucional, José de
Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, vol. II – A
construção dogmática, Coimbra, Almedina, 2006, p. 551-691.
2 Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição,
Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 549 s.
3 J. Novais, As restrições aos direitos fundamentais..., cit., p. 547 ss.; J. Alexandrino, A estruturação do sistema...,
cit., vol. II, p. 454 ss., 645, com outras indicações.
17
“[12.2.] Constatado, porém, que determinados direitos, liberdades e garantias
fundamentais são restringidos pelas normas cuja constitucionalidade vem questionada, há
que decidir sobre a compatibilidade dessa restrição com a Constituição. Ora, não proibindo
a Constituição, em absoluto, a possibilidade de restrição legal aos direitos, liberdades e
garantias, submete-a, contudo, a múltiplos e apertados pressupostos (formais e materiais)
de validade. Da vasta jurisprudência constitucional sobre a matéria decorre, em síntese, que
qualquer restrição de direitos, liberdades e garantias só é constitucionalmente legítima se (i)
for autorizada pela Constituição (artigo 18.º, n.º 2, 1ª parte); (ii) estiver suficientemente
sustentada em lei da Assembleia da República ou em decreto-lei autorizado (artigo 18.º, n.º 2, 1ª parte
e 165.º, n.º 1, alínea b); (iii) visar a salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente
protegido (artigo 18.º, n.º 2, in fine); (iv) for necessária a essa salvaguarda, adequada para o efeito
e proporcional a esse objectivo (artigo 18.º, n.º 2, 2ª parte); (v) tiver carácter geral e abstracto, não
tiver efeito retroactivo e não diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais (artigo 18.º, n.º 3, da Constituição)”.
Em seguida, para resolver a questão relativa à necessidade de autorização constitucional
para a restrição, o Tribunal afasta a possível leitura que seria a de considerar que os direitos
para os quais a própria Constituição não prevê expressamente a possibilidade de restrições
legais, seriam, pura e simplesmente, insusceptíveis de ser restringidos. Acrescentando então:
“[12.3.2.3.1.] O reconhecimento do carácter incomportável de uma tal leitura,
designadamente do ponto de vista das suas consequências práticas, levou, contudo, ao
desenvolvimento jurisprudencial e doutrinário de uma multiplicidade de soluções – como o
recurso, entre outros, ao artigo 29.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, às
autorizações “indirectas ou tácitas” de restrições, às ideias de “limites imanentes”, de
“limites constitucionais não escritos”, de “limites intrínsecos”, de “restrições implícitas”, de
“limites instrumentais” – que, de uma ou outra forma, têm afastado aquela conclusão. O
Tribunal Constitucional utilizou já diversas daquelas vias na sua jurisprudência sobre o
tema, nomeadamente nos Acórdãos n.os 6/84, 81/84, 198/85, 225/85, 244/85, 7/87 [...].
Ora, independentemente da questão de saber qual é, do ponto de vista dogmático, a
solução preferível, a verdade é que não pode seriamente duvidar-se – e, nessa conclusão,
não existe discordância – que a Constituição autoriza, tendo em vista a prossecução das
finalidades próprias do processo penal e respeitadas as demais e já referidas exigências
constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à liberdade geral
de actuação, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informacional” [Segue-se
então a citação do Acórdão n.º 254/99.]
2.2. Ensino da religião e moral católicas
Acórdão n.º 423/87, de 27 de Outubro
(AcTC, vol. 10, p. 77 ss.)
18
Palavras-chave: ensino da religião e moral católicas; Concordata; separação e não confessionalidade;
dimensão positiva da liberdade religiosa; princípio da igualdade; inconstitucionalidade por omissão.
[O Presidente da Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional a declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas do Decreto-Lei n.º 323/83, de 5 de Julho, que,
procedendo à regulamentação do regime concordatário, reconhecia a prevalência do ensino da religião e
moral católicas, à luz da especial representatitivadade da religião católica no país.
Numa decisão com nove juízes parcialmente vencidos, o Tribunal Constitucional declarou a
inconstitucionalidade apenas do n.º 1 do artigo 2.º (na parte em que exige daqueles que não desejem receber
ensino de religião e moral católicas uma declaração expressa em tal sentido) e, consequencialmente, dos n.os 2
e 3 desse artigo.]
____________
Julgamento do Plenário do Tribunal Constitucional. . . .
VIII. . . . [Apesar dos princípios assim consagrados no texto constitucional de 1976],
não parece poder afirmar-se que se haja dado acolhida ao regime estatuído na Lei da
Separação e na Constituição de 1911, instituindo-se um sistema radical de escola laica
idêntico ao ali estabelecido e proibindo todo e qualquer ensino religioso nas escolas
públicas.
. . . . Porque a dimensão real da liberdade, de todas as liberdades e por isso também
da liberdade religiosa, depende fundamentalmente das situações sociais que permitem ou
impedem o seu desfrute existencial como opções reais, a questão deve centrar-se na
transformação do conceito de liberdade autonomia em liberdade situação, isto é, no
significado positivo de liberdade enquanto poder concreto de realizar determinados fins
que constituem o seu objecto [...].
Contudo, se a liberdade religiosa deve entender-se não como uma mera
independência, mas como uma autêntica situação social, a separação e a não
confessionalidade implicam a neutralidade religiosa do Estado, mas não já o seu
desconhecimento do facto religioso enquanto facto social.
. . . . Não se trata de proteger ou privilegiar uma qualquer confissão religiosa, mas sim
de garantir o efectivo exercício da liberdade religiosa, como consequência de uma situação
e de uma exigência social.
. . . .
IX. . . . . o Estado não pode deixar neste domínio de conceder acatamento ao
princípio da igualdade, não sendo assim constitucionalmente legítimas distinções
injustificadas entre igrejas e entre crentes de diversas religiões [...].
. . . . [O Estado] não pode abster-se de, no tocante às demais confissões, lhes
conceder um tratamento afim, tendo em conta, é certo, as circunstâncias próprias de cada
uma delas (dimensão quantitativa, espaço geográfico ocupado, disseminação entre a
19
população escolar, etc.), sob pena de não respeitar o princípio da igualdade e, por via
omissiva, violar o texto constitucional.
. . . . [Aquelas leis que não organizam a colaboração, assistência e ensino com as
confissões não católicas] não são, pois, inconstitucionais por acção. São, ou podem ser,
inconstitucionais por omissão [...].
____________
COMENTÁRIO
Apesar de alguma crítica que lhe foi movida, desde logo dentro da própria decisão (e,
fora dela, por exemplo, por Jónatas Machado), o acórdão em apreciação (que teve um
nítido antecedente no Parecer n.º 17/82 da Comissão Constitucional), na sua linha-média,
fez uma leitura sensata da relevância diferenciada das igrejas e confissões religiosas, num
determinado contexto social e organizativo. Essa linha não deixa aliás de estar presente nos
desenvolvimentos normativos subsequentes (que em boa medida vieram reparar a aludida
inconstitucionalidade por omissão), tais como: o Decreto-Lei n.º 329/98, de 2 de
Novembro (sobre o ensino da educação moral e religiosa das demais confissões religiosas);
a lei da liberdade religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho); a nova concordata com a
Santa Sé (celebrada em 2004, no espírito desta última lei)1; ou as convenções acordadas ou
em vias de o serem, no mesmo espírito, com outras igrejas e confissões.
Como sempre entendemos, os princípios constitucionais não são ofendidos com um
tratamento diferenciado das várias confissões, em razão do modo como as mesmas se
encontram difundidas ou do peso real que têm na sociedade: o plano do conteúdo das
garantias constitucionais (ou seja, o plano da igual liberdade) não é, dentro das balizas
definidas pela Constituição, necessariamente afectado por um tratamento diversificado que
se situe no plano das condições de exercício (ou no plano meramente organizativo). Como temos
defendido, «uma coisa é o Estado, enquanto tal, não assumir fins religiosos, não professar
nenhuma religião, nem submeter qualquer Igreja a um regime administrativo; outra coisa
seria o Estado ignorar as vivências religiosas que se encontram na sociedade ou a função
social que, para além delas, as confissões exercem nos campos do ensino, da solidariedade
ou da inclusão comunitária»2. Por outro lado, a História e o Direito comparado revelam
que, num contexto de sociedade aberta, são efectivamente muito variadas as configurações
constitucionais do fenómeno religioso.
Na verdade, desde que o tratamento diferenciado não degenere em privilégio (artigos
13.º, n.º 2, e 41.º, n.º 2), o reconhecimento de uma liberdade igual a todas as confissões não
prejudica alguma medida de diferenciação neste domínio, desde que respeitados três requisitos:
(1) a livre opção dos pais, (2) a igualdade de todas as confissões religiosas e (3) a exigência
1 Ainda criticamente, J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 614 s.
2 Por último, Jorge Miranda, «Artigo 41.º», in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa
Anotada, tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 448.
20
de que o ensino seja ministrado por docentes indicados por cada confissão religiosa, sob a
responsabilidade e com os programas por ela definidos.
O Tribunal Constitucional veio, mais tarde, a pronunciar-se sobre o princípio da não
confessionalidade do ensino público (no Acórdão n.º 174/93, que criticámos justamente na
medida da ofensa ao agora referido terceiro requisito) e, mais recentemente, sobre a
relevância dos tribunais eclesiásticos (no Acórdão n.º 268/2004), não podendo decerto
ignorar-se a importância desta jurisprudência (contando aí tanto as decisões maioritárias
quanto os votos dissidentes) no progressivo aperfeiçoamento da regulamentação da
liberdade religiosa em Portugal.
2.3. Crédito bonificado à habitação
Acórdão n.º 590/2004, de 6 de Outubro
(Diário da República, 2.ª série, n.º 283, de 3 de Dezembro de 2004, p. 18 129- 18-135)
Palavras-chave: crédito jovem à habitação; direito à habitação; direitos económicos, sociais e culturais;
dignidade da pessoa humana; liberdade de conformação do legislador; revisibilidade; concordância prática;
núcleo essencial; proibição do retrocesso social.
[Neste acórdão estava em apreciação a constitucionalidade da Lei n.º 305/2003, de 9 de Dezembro, que
revogara o regime do crédito bonificado e do crédito jovem bonificado à habitação. O pedido fora
apresentado por um grupo de deputados do Partido Socialista (na oposição desde 2002 a Março de 2005), que
alegara um vasto conjunto de fundamentos, designadamente a incompatibilidade com o disposto nos artigos
9.º, alínea d), 65.º, n.º 3, 70.º, n.º 1, alínea c), e 36.º, n.º 1, da Constituição e ainda a violação da proibição do
retrocesso em matéria de estabilidade da concretização legislativa já alcançada.
Por nove votos a favor e com dois importantes votos dissidentes, o Tribunal Constitucional não deu
provimento ao pedido.]
____________
Julgamento do Plenário do Tribunal Constitucional. . . .
A) O direito à habitação . . . .
[O direito à habitação] é de inegável importância, por si só (veja-se a sua consagração,
entre outros, no artigo 25.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem –
como elemento do direito a um nível de vida suficiente, ao nível do direito à alimentação,
vestuário, cuidados médicos e serviços sociais básicos – e no artigo 11.º, n.º 1, do PIDESC)
e na medida em que constitui uma decorrência da dignidade da pessoa humana, afigurandose
indispensável para a efectivação de outros direitos fundamentais, tais como a reserva da
intimidade da vida privada. Na expressão do Conselho Constitucional francês (decisão n.º
21
94-359 DC, de 19 de Janeiro de 1995 [...]), a possibilidade de todas as pessoas disporem de
uma habitação condigna constitui um objectivo constitucional que prolonga e reforça o
princípio da dignidade da pessoa humana.
. . . . A caracterização do direito à habitação, nos termos expostos, também é aplicável
no quadro do ordenamento jurídico nacional, onde a Constituição dá ao legislador uma
margem de conformação para a prossecução das políticas de habitação. Existem, de facto,
diversos meios de concretizar os objectivos constitucionais, competindo ao poder
legislativo escolher, de entre eles, aqueles que considerar mais adequados. [...].
. . . . Por outro lado, não deve esquecer-se que, como resulta da alínea d) do artigo 9.º
da Constituição, incumbe ao Estado (como tarefa fundamental) promover a efectivação de
todos os direitos económicos, sociais e culturais. Para tal, é necessário articular os diferentes
direitos e objectivos constitucionais. No domínio de que ora nos ocupamos, é, pois,
indispensável conciliar o direito à habitação com os restantes direitos sociais e com
interesses públicos igualmente relevantes como a protecção do ambiente, o urbanismo e
um ordenamento adequado do território. [...] Assim sendo, impõe-se ao legislador realizar
uma tarefa de concordância prática para concretizar, pelo menos, o núcleo essencial de
todos os direitos sociais e económicos.
. . . . Tendo em conta todos os factores enunciados (liberdade do legislador na
escolha das medidas concretizadoras de uma política de promoção do acesso à habitação;
necessidade de concordância prática do direito à habitação com outros direitos e valores
fundamentais; alteração do quadro macro-económico; evolução das taxas de juro;
desenvolvimento do mercado do crédito à habitação; deficiente funcionamento do sistema
de atribuição de crédito bonificado e, decisivamente, a existência de outros instrumentos de
prossecução da referida política), conclui-se que as normas questionadas não padecem de
inconstitucionalidade por violação do disposto nos artigos 65.º, n.º 3, e 9.º, alínea d), da Lei
Fundamental.
. . . .
D) A proibição do retrocesso social. . . .
Para determinar se as normas sub iudice configuram um retrocesso social
constitucionalmente proibido (para quem entenda que a Constituição não consagra um tal
princípio a questão fica desde logo resolvida) importa colocar o problema numa outra
perspectiva, apontada no Acórdão n.º 509/02, não deixando de se salientar que, no aresto
citado, aquele princípio – sobre o qual foram expostas diversas concepções doutrinais –
acabou por não ser ponderado como parâmetro de constitucionalidade das normas então
em causa.
[Nesse Acórdão n.º 509/02, ficou expresso] o que constituiria, a este propósito, um
ponto de convergência doutrinária – a «necessidade de harmonizar a estabilidade da
concretização legislativa já alcançada no domínio dos direitos sociais com a liberdade de
conformação do legislador» [...] [Seguem-se citações dos Acórdãos n.os 509/02 e 474/02].
Como se disse já, as normas constitucionais relativas ao direito à habitação e à
protecção especial dos jovens no acesso à habitação não contêm uma ordem de legislar nos
22
termos acima descritos. O legislador goza, neste domínio, como também já se afirmou, de
liberdade de escolha dos meios de prossecução das determinações constitucionais.
Configura-se, assim, a segunda das situações enunciadas, ou seja aquela em que só
existirá retrocesso social constitucionalmente proibido em casos-limite – quando se deixe
de assegurar o núcleo essencial de um direito fundamental consagrado na Constituição.
Ora, de tudo o que já se expôs e em face, designadamente, da subsistência de outros
instrumentos jurídicos de concretização dos direitos à habitação e à protecção especial dos
jovens, não pode deixar de se concluir que o “retrocesso social” que advém da revogação
do regime de crédito bonificado não afecta o conteúdo essencial dos referidos direitos. A
solução consagrada na Lei n.º 305/2003 deve, assim, ser entendida no contexto da
revisibilidade das opções legislativas decorrente do princípio da alternância democrática,
não constituindo violação da Lei Fundamental.
COMENTÁRIO
O direito à habitação, garantido no artigo 65.º da Constituição, pertence àquele
pequeno núcleo de direitos fundamentais sociais que maior favor tem encontrado na
jurisprudência constitucional – só o direito à saúde e, em menor medida, o direito ao
ensino e o direito à segurança social ascendem a esse grupo. Esse favor tem-se revelado
quer na ocasional defesa de uma dupla natureza (ou seja, de uma vertente negativa e de
uma vertente positiva) da figura (Acórdão n.º 101/92), quer nas restrições a outros direitos
fundamentais que nele têm encontrado fundamento, quer por pertencer ao núcleo de
direitos fundamentais sociais mínimos (Acórdão n.º 590/2004), quer, enfim, pelo número e
pela qualidade dos acórdãos a que tem dado lugar. Todavia, se julgada pelos resultados, a
jurisprudência é relativamente inócua: porque na generalidade dos casos parece fazer pesar
a realização das exigências do direito à habitação não sobre o Estado, mas sim sobre os
particulares, vinculados não só a uma hipoteca social da propriedade como a um dever de
solidariedade (a exemplo dos Acórdãos n.os 151/92, 4/96, 486/97, 570/2001 ou 723/2004);
porque tem afinal consentido numa amplíssima liberdade de conformação do legislador;
porque não soube afinal retirar consequências jurídicas relevantes nem da alegada dimensão
negativa desse direito, nem do seu alegado conteúdo mínimo ou essencial, nem do facto de
se tratar de um dos direitos fundamentais sociais básicos (mesmo por apelo ao standard
internacional).
O direito à habitação destaca-se também por ser o direito fundamental mais
frequentemente associado ao princípio da solidariedade (assim, por exemplo, os Acórdãos
n.os 4/96, 486/97, 263/2000, 322/2000, 309/2001, 570/2001, 723/2004), decorrendo
dessa articulação normativa uma específica função restritiva, sobretudo junto dos direitos
fundamentais da esfera económica ou, em geral, dos direitos patrimoniais privados – ainda
que por vezes seja visível uma confusão entre estes e a garantia constitucional da
propriedade privada (artigo 62.º da Constituição). Segundo um dictum recorrente, o
23
proprietário privado é chamado a ser solidário com o seu semelhante, vinculando nessa
medida o direito fundamental também a propriedade privada (Acórdão n.º 723/2004).
Todavia, como sucede na decisão em análise, a articulação com o princípio da
solidariedade social não exclui outras ligações, designadamente com a dignidade da pessoa
humana (como se escreveu nesse mesmo Acórdão n.º 723/2004, o direito à habitação «é,
de facto, uma exigência da dignidade da pessoa humana, daquilo que a pessoa, ontologicamente
é: um ser livre, com direito a viver com dignidade») e com a igualdade real (Acórdão n.º
465/2001). Por sua vez, a invocação, certamente induzida pelos termos do pedido, da
tarefa fundamental do Estado prevista no artigo 9.º, alínea d), da Constituição, teve a
particularidade de se referir aos direitos fundamentais sociais como “reforço” e
“prolongamento” da dignidade da pessoa humana.
A respeito da natureza jurídica do direito à habitação, num dos leading cases que de
algum modo resume um traço de continuidade na jurisprudência do Tribunal
Constitucional (o Acórdão n.º 130/92), escreveu-se: «[o] direito à habitação, como um
direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada,
recondutível a uma mera pretensão jurídica [...] ou, antes, como um autêntico direito
subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão [...], não confere a este um direito
imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si
mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado – e, igualmente, as regiões autónomas e os
municípios – como único sujeito passivo – e nunca, ao menos em princípio, os
proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma
interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o
cidadão só poderia exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela
lei».
Na caracterização jurídica deste direito, a orientação dominante no Tribunal tem
afinal acentuado a faceta (predominante) de direito a prestações positivas do Estado, direito
que só a título excepcional tem como destinatário imediato os sujeitos privados (Acórdãos
n.ºs 130/92, 346/93, 465/2001, 590/2004). Por sua vez, dada a indeterminabilidade do seu
conteúdo no plano constitucional (Acórdãos n.os 731/95, 465/2001), trata-se de um direito
que pressupõe uma tarefa de mediação do legislador (Acórdãos n.ºs 346/93, 322/2000,
590/2004), mostrando-se a respectiva concretização dependente quer das opções políticas
(Acórdão n.º 590/2004), quer da reserva do possível1.
Depois do marco discursivo constituído pelo Acórdão n.º 509/20022, acentuam-se
neste acórdão de 2004 diversos sinais de uma certa reorientação argumentativa a respeito da
realização dos direitos fundamentais sociais e, por conseguinte, do direito à habitação3.
1 Com outras indicações, cfr. José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e
garantias na Constituição portuguesa, vol. II – A construção dogmática, Coimbra, Almedina, 2006, p. 596-597.
2 Acórdão que, segundo alguns autores, «sob a aparente solidez da dignidade da pessoa humana, acaba
por proceder à redução eidética da socialidade, colocando entre parênteses os direitos económicos, sociais e
24
Entre esses sinais avultam os seguintes: o real abandono da doutrina da proibição do
retrocesso (pelo menos na fórmula que efectivamente alcançou, no famoso Acórdão n.º
39/84, sobre o Serviço Nacional de Saúde, em que, sintomaticamente, a repartição de votos
foi também de dez votos favoráveis e dois votos de vencido); o abandono implícito da
interessante doutrina das cláusulas específicas de proibição do retrocesso (defendida nas
declarações de votos dos Conselheiros Ribeiro Mendes e Luís Nunes de Almeida, no
Acórdão n.º 148/94); a efectiva adopção do princípio inverso da “revisibilidade das opções
legislativas”; o recurso a um totalmente novo argumento de cariz holístico, segundo o qual a
tarefa do legislador é a de promover a efectivação de todos os direitos económicos, sociais e
culturais (ou, em versão mínima, do conteúdo essencial de todos eles), devendo ainda
conciliar um concreto direito fundamental social com os demais direitos sociais e com os
demais bens e interesses constitucionalmente relevantes; enfim, o apelo à diferenciação a
estabelecer entre os próprios direitos fundamentais sociais, uma vez que alguns de entre
eles («como o direito a um nível de vida suficiente, ao nível do direito à alimentação,
vestuário, cuidados médicos e serviços sociais básicos») seriam de inegável importância, à
luz designadamente da DUDH e por serem decorrência da dignidade da pessoa humana e
ainda instrumento de efectivação de outros direitos fundamentais.
Em especial quanto ao problema da proibição do retrocesso social, pode afirmar-se,
sem hesitação, que o Tribunal assume hoje em dia inteiramente (Acórdão n.o 336/2007) a
doutrina fixada nos Acórdãos n.os 509/2002 e 590/2004.
2.4. Referendo ao aborto [Aborto III]
Acórdão n.º 288/98, de 17 de Abril
(AcTC, vol. 40, p. 7-93)
Palavras-chave: interrupção voluntária da gravidez; protecção da vida intra-uterina; direito à vida; direito ao
desenvolvimento da personalidade; autonomia da mulher; direito a uma maternidade consciente; colisão de
bens; ponderação de interesses; concordância prática; margem de conformação do legislador; igualdade.
[Foi solicitada ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da
proposta de referendo aprovada pela Assembleia da República, cuja pergunta era a seguinte: «Concorda com a
despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10
semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»
culturais» – e cujo resultado desolador seria o seguinte: «não há direitos sociais autonomamente recortados,
mas refracções sociais da dignidade da pessoa humana aferida pelos standards mínimos da existência» (cfr.
José Joaquim Gomes Canotilho, «Direitos sociais e deslocação da socialidade», in La Constitución portuguesa de
1976, coord. de Javier Tajadura Tejada, Madrid, Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2006, p. 82).
3 Para uma visão de conjunto, J. Alexandrino, A estruturação do sistema..., cit., vol. II, p. 602-611.
25
Com sete votos a favor e seis votos de vencido, numa decisão relatada pelo Conselheiro Luís Nunes de
Almeida, o Tribunal deu por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na
Resolução n.º 16/98 da Assembleia da República, viabilizando desse modo a realização do referendo.]
____________
Julgamento do Plenário do Tribunal Constitucional. . . .
45 – A verdade, porém é que não foi deste pressuposto [de que a mulher tem
constitucionalmente garantido um direito a abortar] que se partiu na anterior jurisprudência
do Tribunal Constitucional, vertida no Acórdão n.º 25/84 e no Acórdão n.º 85/85, já
oportunamente citados. [Seguem-se citações destes dois acórdãos.]
. . . .
46 – Nesta visão das coisas, reconhecer-se-á que o artigo 24.º da Constituição da
República, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à vida,
subjectivado em cada indivíduo, integra igualmente uma dimensão objectiva, em que se
enquadra a protecção da vida humana intra-uterina, a qual constituirá uma verdadeira
imposição constitucional.
Todavia, essa protecção da vida humana em gestação não terá que assumir o mesmo
grau de densificação nem as mesmas modalidades que a protecção do direito à vida
individualmente subjectivado em cada ser humano já nascido – em cada pessoa. Aliás,
existe uma bem radicada e inegável tradição jurídica tendente a tratar diferenciadamente os
já nascidos e os nascituros, que se revela, desde logo, na negação da personalidade jurídica a
estes últimos (basta recordar o modo sugestivo como se refere à aquisição da personalidade
jurídica o artigo 66.º, n.º 1, do Código Civil) e se manifesta, no âmbito do direito penal,
exactamente com a incontestada punição diferenciada do aborto relativamente ao
homicídio, designadamente no que se refere à distinta medida legal da pena e à não punição
do aborto por negligência e, actualmente, entre nós, com a autonomização sistemática dos
crimes contra a vida intra-uterina.
De todo o modo, de acordo com esta leitura, o legislador ordinário estará vinculado a
estabelecer formas de protecção da vida humana intra-uterina, sem prejuízo de,
procedendo a uma ponderação de interesses, dever balancear aquele bem jurídico
constitucionalmente protegido com outros direitos, interesses ou valores, de acordo com o
princípio da concordância prática.
. . . .
47 – Neste contexto se perceberá que, para quem entenda que a vida humana intrauterina
constitui um bem jurídico constitucionalmente protegido pelo artigo 24.º da CRP,
uma primeira questão consista em determinar em que casos e circunstâncias, efectuada uma
adequada ponderação de interesses, se pode admitir a licitude da interrupção voluntária da
gravidez, assim se resolvendo os eventuais conflitos entre aquele referido bem jurídico e os
direitos da mulher, não só à vida, à saúde ou à dignidade, mas também a uma maternidade
26
consciente – a que se refere o artigo 67.º, n.º 2, alínea d), da CRP –, principalmente quando
conjugado com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, recentemente
consagrado no artigo 26.º da Lei Fundamental, com a última revisão constitucional.
Ora, não se afigura inadequado que a ponderação de interesses em causa tenha em
conta o período de gestação, «sendo certo que não é indiferente, à luz da consciência
cultural e jurídica, a fase de desenvolvimento do feto, reclamando este uma tutela tanto
maior quanto mais próximo estiver o seu nascimento», conforme se afirmou no Acórdão
n.º 85/85.
. . . .
48 – Ora, poderá acrescentar-se, a harmonização entre a protecção da vida intrauterina
e certos direitos da mulher, na procura de uma equilibrada ponderação de
interesses, é susceptível de passar pelo estabelecimento de uma fase inicial do período de
gestação em que a decisão sobre uma eventual interrupção voluntária da gravidez cabe à
própria mulher.
. . . . É que a harmonização, a concordância prática, se faz entre bens jurídicos,
implicando normalmente que, em cada caso, haja um interesse que acaba por prevalecer e
outro por ser sacrificado. Quer isto dizer que, sempre dentro da perspectiva que agora se
explicita, o legislador não poderia estabelecer, por exemplo, que o direito ao livre
desenvolvimento da personalidade da mulher era hierarquicamente superior ao bem
jurídico «vida humana intra-uterina» e, consequentemente, reconhecer um genérico direito
a abortar, independentemente de quaisquer prazos ou indicações; mas, em contrapartida, já
pode determinar que, para harmonizar ambos os interesses, se terão em conta prazos e
circunstâncias, ficando a interrupção voluntária da gravidez dependente apenas da opção da
mulher nas primeiras dez semanas, condicionada a certas indicações em fases subsequentes
e, em princípio, proibida a partir do último estádio de desenvolvimento do feto.
Assim, neste último caso, procura-se regular a interrupção voluntária da gravidez,
ainda de acordo com uma certa ponderação de interesses que tem também como critério o
tempo de gestação, pelo que a referida ponderação se há-de efectuar, tendo em conta os
direitos da mulher e a protecção do feto, em função de todo o tempo de gravidez, não
sendo, portanto, exacto considerar isoladamente que, durante as primeiras dez semanas, não
existe qualquer valoração da vida intra-uterina; num contexto global, esta será quase sempre
prevalecente nas últimas semanas, enquanto nas primeiras se dará maior relevo à
autonomia da mulher (uma vez respeitadas certas tramitações legais que, aliás, podem
traduzir uma preocupação de defesa da vida intra-uterina).
49 – . . . . [Entre nós], se o direito ao livre desenvolvimento da personalidade,
englobando a autonomia individual e a autodeterminação e assegurando a cada um a
liberdade de traçar o seu próprio plano de vida, designadamente quando associado ao
direito a uma maternidade consciente, terá a virtualidade de avalizar uma eventual opção
legislativa no sentido da exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez
efectuada nas primeiras dez semanas – ou, pelo menos, no sentido de conferir à mulher o
direito de, dentro desse prazo, ser ela a determinar os casos e circunstâncias que a podem
27
justificar –, já não implicará o reconhecimento de que a mulher tem inteira liberdade de
controlar a sua própria capacidade reprodutiva (um direito constitucional a livremente
abortar).
Ou seja, a colisão de bens jurídicos constitucionalmente protegidos, existente no caso
dos autos, pode ser resolvida pelo legislador, estando dentro da sua margem de liberdade
de conformação a opção por punir – suposto que permanece, neste caso, o modelo das
indicações – ou não punir a interrupção voluntária da gravidez efectuada nas primeiras dez
semanas.
Quer isto dizer, em suma, que também quem considera que a vida humana intrauterina
se encontra abrangida pela disposição do artigo 24.º, n.º 1, da CRP, concluirá, neste
entendimento das coisas, pela não inconstitucionalidade da proposta de referendo.
. . . .
51 – . . . . Quer isto dizer que se reconhece a discricionariedade do legislador para
optar pelo uso de meios penais, até porque, no caso vertente, nem existe consenso social em
torno da criminalização, nem se exclui que se esteja perante um direito penal simbólico, nem se
demonstra que aqueles meios não possam ser vantajosamente substituídos por outros de
maior eficácia prática.
A isto acresce que as circunstâncias de facto, às quais só o legislador poderá dar
resposta, permitem que, numa sociedade europeia em que praticamente foram abolidas as
fronteiras, se crie uma escandalosa situação de desigualdade perante a lei penal: quem
usufruir de razoável situação económica e pretender interromper a gravidez, quiçá por
comodismo, poderá impunemente fazê-lo numa boa clínica de um país europeu; mas,
quem não tiver capacidade económica e for levada ao aborto por necessidade, correrá o
duplo risco da intervenção clandestina e da sanção penal.
. . . .
53 – Em suma, entende-se que, não havendo uma imposição constitucional de
criminalização na situação em apreço, cabe na liberdade de conformação legislativa a opção
entre punir criminalmente ou despenalizar a interrupção voluntária da gravidez efectuada
nas condições referidas na pergunta constante da proposta de referendo aprovada pela
Resolução n.º 16/98 da Assembleia da República.
COMENTÁRIO
Ainda que este seja o terceiro julgamento do Tribunal Constitucional sobre a
interrupção voluntária da gravidez, ao qual se seguiu, oito anos após, o Acórdão n.º
617/2006 (aborto IV), importa centrar a análise da questão no Acórdão n.º 288/98 por
diversas razões. Em primeiro lugar, nos dois primeiros Acórdãos (n.os 25/84 e 85/85)
estavam em causa alterações de pequeno significado, quando comparadas com o alcance da
proposta referendária em apreciação em 1998. Em segundo lugar, em 1998, as soluções
legislativas de 1984 encontravam-se por assim dizer consensualizadas (tanto junto do
legislador de revisão, como da doutrina e da sociedade), correspondendo além disso ao
28
sentido da abertura registada na sociedade portuguesa no último quartel do século XX. Em
terceiro lugar, a decisão de 1998 é essencial para aferir, pela primeira vez, o sentido da
constitucionalização, em 1997, do direito ao desenvolvimento da personalidade, aditado ao
artigo 26.º, n.º 1, da Constituição. Por último, é fácil de verificar o peso desse aresto de
1998 na recente decisão aborto IV (2006).
Importa, em seguida, referir que as quatro sentenças sobre a matéria constituem
talvez o domínio de maior fractura no seio do Tribunal Constitucional. No entanto, quer em
1998 quer em 2006, o Tribunal Constitucional não inviabilizou a consulta popular (já em
2005, a inviabilização do referendo deveu-se apenas a razões formais de procedimento
parlamentar)1.
Embora nenhum dos dois referendos realizados (em 1998 e 2007) tenha sido
juridicamente vinculativo, por não ter atingido o patamar mínimo de 50% dos eleitores
inscritos, num caso como no outro, os resultados dessas consultas populares foram
politicamente relevantes: em 1998, uma vez que a resposta popular foi de sentido negativo,
houve um compromisso (que se estendeu por duas legislaturas) de não alteração da lei
(pelo menos sem uma prévia consulta popular); em 2007, uma vez que agora a resposta
popular foi de sentido positivo (e dado o compromisso eleitoral de alteração da lei nesse
cenário), procedeu-se à despenalização da interrupção voluntária da gravidez nas primeiras
dez semanas. No momento da promulgação da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, o
Presidente da República entendeu no entanto dirigir ao Parlamento, sob a forma de
mensagem, uma extensa lista de observações e recomendações (que, em boa parte, não
foram atendidas na regulamentação operada pela portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho).
A aprovação da lei mereceu o voto favorável de cerca de 2/3 dos deputados e não apenas
do tradicional voto dos partidos da Esquerda parlamentar; terá sido aliás por essa razão que
o Presidente da República não fez uso da fiscalização preventiva, nem do veto político, não
obstante as reservas políticas e jurídicas patentes na sua mensagem. Todavia, em Julho de
2007, um grupo de três dezenas de deputados apresentou ao Tribunal Constitucional um
pedido de fiscalização sucessiva abstracta da Lei n.º 16/2007, pelo que se espera uma nova
pronúncia da justiça constitucional sobre a matéria (aborto V).
Quanto à substância da decisão, a divisão de votos dos juízes é bem o espelho da
diversidade de opiniões e de perspectivas identicamente observável na doutrina. Não
obstante isso, há a dizer que neste acórdão o Tribunal recebe inteiramente o legado dos
precedentes Acórdãos n.os 25/84 e 85/85, nomeadamente quanto aos seguintes aspectos:
reconhecimento de que a vida humana intra-uterina está também protegida no artigo 24.º
da CRP (na dimensão objectiva da norma de direito fundamental), enquanto bem jurídico e
imposição constitucional; reconhecimento de que o legislador ordinário está vinculado a
estabelecer formas de protecção da vida humana intra-uterina; reconhecimento de que na
ponderação de interesses a estabelecer é razoável uma diferenciação que atenda às fases de
1 Acórdão n.º 578/2005, in Diário da República, 1.ª série, n.º 220, de 16 de Novembro de 2005, p. 6529-
6541.
29
desenvolvimento do feto; reconhecimento de uma ampla margem de conformação ao
legislador, que pode optar ou não pelo uso dos meios penais.
A este legado, são aditados três novos elementos: o primeiro traduz-se na afirmação
de que a ponderação de interesses a estabelecer entre os direitos da mulher e a protecção da
vida intra-uterina pode passar pelo estabelecimento de uma fase inicial do período de
gestação em que a decisão sobre uma eventual interrupção voluntária da gravidez cabe à
própria mulher; o segundo traduz-se no esforço (inovador) de recorte do novo direito ao
desenvolvimento da personalidade, tendo defendido que o mesmo engloba «a autonomia
individual e a autodeterminação e assegurando a cada um a liberdade de traçar o seu
próprio plano de vida»2, para daí retirar duas conclusões importantes (a de que esse direito
não é hierarquicamente superior e a de que dele não deriva um direito constitucional a
abortar); o terceiro reside na invocação de um novo fundamento para sustentar a
constitucionalidade de uma resposta afirmativa no referendo, construído sobre a
desigualdade perante a lei penal, pois só as mulheres que não tenham capacidade
económica e recorram ao aborto por necessidade, correm o duplo risco da intervenção
clandestina e da sanção penal.
Ainda que sem a mesma consistência argumentativa, a doutrina do Acórdão n.º
288/98 foi retomada no Acórdão n.º 617/2006, que apenas inovou na ênfase manifestada
relativamente ao (alegado) direito fundamental da mulher à manutenção de um projecto de
vida (fórmula aliás utilizada mesmo por alguns dos juízes dissidentes).
III – DIREITO CONSTITUCIONAL INSTITUCIONAL
(Institutions centrales de l’Etat et organisation territoriale de l’Etat)
3.1. Vagas no ensino superior
Acórdão n.º 1/97, de 8 de Janeiro
(AcTC, vol. 36, p. 7-64)
2 Noutros casos, o Tribunal Constitucional, talvez por adesão mecânica, parece seguir uma linha de
orientação que pretende ler nessa figura consagrada em 1997 uma liberdade geral de actuação. Ainda que
começando por se referir à fórmula utilizada neste Acórdão n.º 288/98 (que vê nesse direito uma garantia
constitucional forte e delimitável), o Tribunal pretende conceder a esse direito uma configuração similar àquela
que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do artigo 2.º, n.º 1, da Lei Fundamental alemã
apresenta normalmente na dogmática germânica. Afasta-se, por isso, de uma outra linha de pensamento
(como a reflectida nos acórdãos n.os 288/98, 436/2000, 471/2001 ou 617/2006), em que a figura foi, mais
acertadamente, recortada como uma nova garantia constitucional incidindo sobre um núcleo de autonomia e
de conformação privada da vida.
30
Palavras-chave: criação por lei de vagas no ensino superior; separação de poderes; interdependência; reserva
geral de administração; limites do poder legislativo do Parlamento; configuração do Governo; Estado de
direito democrático; conceito formal de lei; retroactividade; segurança jurídica; igualdade de oportunidades.
[O Presidente da República requereu a fiscalização preventiva de um decreto do Parlamento sobre criação de
vagas adicionais no acesso ao ensino superior, decreto que tinha sido aprovado com os votos coligados dos
partidos da oposição.
O Tribunal, numa decisão com diversos votos de vencido, vem a pronunciar-se pela inconstitucionalidade do
artigo 1.º (e pela inconstitucionalidade consequente das restantes normas) do referido decreto, não pelos
principais fundamentos invocados no pedido, mas por violação do princípio da segurança jurídica e do
princípio da igualdade, em particular da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, consagrada
nos artigos 13.º e 76.º, n.º 1, da Constituição.]
_____________
Pronúncia do Plenário do Tribunal Constitucional. . . .
II – Fundamentação . . . .
[Na análise da constitucionalidade], o Tribunal Constitucional não está vinculado ao
limitado confronto das normas em apreciação com os princípios e normas constitucionais
invocados (cf. artigo 51.º, n.º 5, da Lei n.º 28/82).
. . . .
[A]pesar de o princípio da separação de poderes ter tido formulações históricas nem
sempre associadas à ideia de Estado de direito democrático, aquele princípio veio a
adquirir, em conexão com esta ideia, a natureza de um instrumento garantístico da esfera
jurídico-subjectiva e, em última análise, de controlo democrático do poder [...].
Por isso, logo naquele plano, a reserva geral de administração surge como inadequada
à função actual do princípio, na medida em que diminuiria possibilidades de efectivação do
controlo democrático do Executivo, limitando as áreas de intervenção legislativa do
Parlamento e excluindo-o da directa decisão política.
Por outro lado, não decorre seguramente do artigo 114.º, n.º 1, da Constituição
[actualmente, artigo 111.º], em conjugação com o próprio artigo 2.º, que consagra o
princípio do Estado de direito democrático, uma reserva geral de administração. A
separação e interdependência dos órgãos de soberania aí prevista exprime um esquema
relacional de competências, funções, tarefas e responsabilidades dos órgãos do Estado,
destinado a assegurar, simultaneamente, a referida medida jurídica do poder e um princípio
de responsabilidade dos órgãos de soberania [...].
Não se consubstancia, no texto constitucional, qualquer estrita correspondência entre
separação de órgãos e separação de funções, de modo a que a separação de órgãos tenha o
sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles. A interdependência
31
dos órgãos do Estado a que o artigo 114.º [111.º], n.º 1, se refere exprime até uma lógica de
colaboração e articulação funcional.
A própria atribuição de competência legislativa ao Governo (artigo 201.º [198.º]) e de
outras competências, para além da legislativa, à Assembleia da República (artigos 164.º,
165.º e 166.º [161.º, 162.º e 163.º]) demonstra que a Constituição portuguesa não adoptou
um modelo de rígida sobreposição de órgãos a funções, em que se viesse a enquadrar uma
reserva geral de administração.
Finalmente, e de modo decisivo, mesmo sendo constitucionalmente atribuído ao
Governo o núcleo essencial da função administrativa, enquanto órgão superior da
administração pública e com competência correspondente ao núcleo essencial da função
administrativa (artigos 185.º e 202.º [182.º e 199.º]), isso não significa que matéria
susceptível de ser objecto de actividade administrativa, como a regulamentação de leis, não
possa, igualmente, ser objecto de lei da Assembleia da República.
Na realidade, de outro modo, a competência administrativa do Governo significaria,
necessariamente, um limite de competência legislativa da Assembleia da República quanto a
certas matérias, limite que a Constituição não permite deduzir, em face do artigo 164.º
alínea d), [161.º, alínea c)] que expressamente se refere à competência da Assembleia da
República para fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas ao Governo (e
respeitantes à sua própria organização e funcionamento, nos termos do n.º 2 do artigo
201.º [198.º]).
. . . . A alegação de as normas referidas constituírem uma invasão, pela Assembleia da
República, do âmago da função administrativa, ofendendo uma reserva geral de
administração, não procede, pois, por uma dupla razão: tal reserva não é configurada na
Constituição e as normas sindicadas, pela sua natureza, nem sequer são susceptíveis de
invadir o núcleo essencial da função administrativa.
9 – [Relativamente à alegação da violação de reservas funcionais específicas], é muito
discutível que a delimitação da competência do Governo prevista no artigo 202.º [199.º]
corresponda, no sistema lógico-sistemático da Constituição portuguesa, a qualquer reserva
material de competência do Governo com a mesma natureza da reserva de lei [...].
Devendo a tese das reservas funcionais específicas fundamentar-se, em última
instância, no princípio do Estado de direito democrático, então valem relativamente a ela as
razões já invocadas contra a reserva material geral de administração. Na verdade, a
necessidade de atribuir ao Executivo um domínio de actuação específico, como corolário
da divisão e interdependência dos órgãos de soberania, não implicará uma reserva originária
e absoluta relativamente a determinadas matérias, mas, tão-só, a competência para escolher
entre alternativas de decisão, no espaço não delimitado previamente pela lei parlamentar. E
isto há-de significar apenas a reserva de um poder formal de regulamentação, de poderes
formais para praticar actos de organização da administração e de poderes políticos gerais,
nos termos do artigo 202.º [199.º], alíneas c), d) e g), respectivamente.
. . . . O que aqui é decisivo, como se disse, é que o decreto em análise cria critérios de
valoração dos resultados de um concurso inovadores, excepcionais e aplicáveis
32
retroactivamente, dos quais resultará uma total conformação ou vinculação da
administração. Reduz, assim, o espaço previamente concedido à administração na
determinação das vagas disponíveis e sobrantes e promove, precisamente desse modo, uma
derrogação da legislação anterior para uma situação concreta. Por tudo isto, não é legítimo
concluir que as normas em apreço implicam a substituição do Governo pela Assembleia da
República, em violação do disposto na alínea d) do artigo 202.º [199.º] da Constituição.
10 – . . . . A caracterização constitucional do Governo como órgão de condução da
política e órgão superior da administração pública não poderá significar, em caso algum,
uma subtracção de matérias ao poder legislativo nem retirar à Assembleia da República a
decisão política, confinando-a à mera discussão e à crítica inconclusiva, sem possibilidade
de levar a cabo um efectivo controlo do poder executivo [...].
O papel do Governo como órgão de condução da política e órgão superior da
administração pública postula actuações legalmente fundamentadas e o exercício de uma
discricionariedade dentro do espaço legalmente consentido – o que terá de depender dos
necessários apoios parlamentares e não de qualquer reserva de executivo. Por outro lado,
não será uma esporádica e excepcional limitação do espaço de manobra do Governo, sem
qualquer deliberada e reiterada substituição funcional pela Assembleia da República, que
poderá violar o artigo 185.º [182.º] da Constituição [...].
11 – . . . . [Mas também o argumento segundo o qual as normas do Decreto n.º
58/VII não podem ser qualificadas como normas legais em sentido material] não revela
uma inconstitucionalidade no caso concreto, na medida em que as leis reguladoras de casos
individuais não ferem, pelo seu âmbito de aplicação, as exigências de universalidade
próprias da norma jurídica. As chamadas leis-medidas, tais como, por exemplo, certas leis
de emergência, não contendem necessariamente, por razões de forma – falta de
generalidade e abstracção –, com a separação de poderes. Nada impede que se venha a
obter através da regulação do caso individual o próprio efeito de igualdade, a coerência
valorativa ou uma dimensão generalizadora.
Tais leis podem ser, à semelhança de todas as outras, violadoras da igualdade. Em
todo o caso, os possíveis vícios destas leis não radicam no confronto com as características
conceptuais da abstracção e da generalidade – ou seja, com os limites da competência
legislativa –, desde que lhes presida uma intencionalidade generalizadora, apta a uma
renovação dos mesmos critérios perante situações futuras semelhantes [...].
COMENTÁRIO
Tal como no Acórdão n.º 24/98 (caso das portagens), num contexto de Governo
minoritário, tratava-se aqui de apreciar a legitimidade de uma interferência do Parlamento,
agindo através de acto legislativo, em áreas que tradicionalmente constituem reserva
material da Administração, sendo essa a dimensão essencial aqui objecto de comentário.
Estava efectivamente colocada no pedido a apreciação do sentido e do alcance
concreto do princípio da separação e interdependência de poderes na Constituição de 1976,
33
tanto no plano funcional, como no plano institucional e no sócio-estrutural1. No plano
funcional, porque ocorria uma invasão do que parecia ser uma zona nuclear da função
administrativa; no plano institucional, pela subversão do estatuto constitucional do
Governo; no sócio-estrutural, por duas razões: porque se espelhava de certo modo aí a
especificidade da matriz portuguesa da forma de governo semipresidencialista e porque, no
caso, era nítida essa nova faceta do princípio da separação de poderes, a do dualismo
“maioria-oposição” (com a particularidade de a maioria ser, na realidade, um governo
minoritário e de a oposição ter funcionado como bloco maioritário de partidos, apenas
circunstancialmente coligados)2.
Além da actualização histórica que considerou devida e do reconhecimento da
multifuncionalidade do princípio da separação de poderes, o Tribunal recusou enveredar
por uma teoria material de funções do Estado, não se envolvendo sequer com a ideia de
núcleo essencial de competências (salvo na situação-limite da pura substituição funcional).
Na verdade, há muito que o Tribunal Constitucional vem entendendo (por exemplo, no
Acórdão n.º 461/87) que não é configurável, no ordenamento jurídico-constitucional
português, qualquer reserva material de administração, que inclua, nomeadamente, uma
reserva de regulamento ou impeça a Assembleia da República de aprovar uma lei sobre
matéria disciplinável administrativamente (exemplos similares podem colher-se nos
Acórdãos n.os 317/86, 195/94, 24/98, 494/99).
Essa orientação remonta mesmo à jurisprudência da Comissão Constitucional
(Pareceres n.os 16/79 e 26/79, por exemplo), expressamente relevada como precedente:
«mesmo que se reconheça que sempre será inerente ao princípio do Estado de direito
democrático a reserva de um núcleo essencial da administração ou do executivo – como
condição da limitação do exercício dos poderes pelos órgãos de soberania e da própria
necessidade de responsabilização do Governo – , ainda assim a colisão com tal núcleo
haveria de implicar uma pura substituição funcional do Executivo, no preciso espaço da
sua actividade normal, pelo Parlamento, sem qualquer justificação especial». É certo que,
ainda no parecer n.º 16/79, se concluiu que haveria violação do princípio da separação de
poderes, por afectação desse núcleo essencial, sempre que um órgão de soberania se
atribuísse, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe,
competência para o exercício de funções que sejam essencialmente conferidas a outro
órgão.
De facto, na doutrina, apesar de ser maioritária a orientação que reconhece, em
Estado social, a admissibilidade de um conceito puramente formal de lei, as mesmas vozes
não fazem decorrer daí a ideia de «que a lei pode descer ao nível da pura administração»,
defendendo pelo menos a existência de reservas específicas de administração perante o
1 Sobre a relevância destes diversos níveis ou dimensões, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 556 ss., 579 ss.
2 Cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., cit., p. 562 s.
34
legislador, designadamente a título de redutos ou núcleos essenciais da função
administrativa3.
Num sentido dinâmico e constitucionalmente adequado, separação de poderes
significa mais do que reserva de competência de certos órgãos, significa «distribuição de
competências em moldes funcionalmente adequados, na qual, a par de uma conexão mais
ou menos próxima com as funções do Estado, sobreleva o intuito de divisão, de
desconcentração, de limitação de poder»4.
3.2. Incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos
Acórdão n.º 382/2007, de 3 de Julho
(Diário da República, 1.ª série, n.º 144, de 27 de Julho de 2007, p. 4831-4843)
Palavras-chave: estatuto político-administrativo da região; reserva de estatuto; procedimento legislativo.
[O Presidente da República requereu a fiscalização preventiva da norma constante do artigo 1.º do Decreto
n.º 121/X, de 17 de Maio de 2007, da Assembleia da República, que “Altera o regime de incompatibilidades e
impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos”, alegando que essa norma legal pode
ter regulado indevidamente uma matéria de reserva necessária dos Estatutos Político-Administrativos das
Regiões Autónomas.
O Tribunal Constitucional veio a pronunciar-se pela inconstitucionalidade, com um único voto de vencido.]
____________
Pronúncia do Plenário do Tribunal Constitucional. . . .
6. . . . . A circunstância de os estatutos político-administrativos das Regiões Autónomas
terem uma relevante dimensão organizatória não pode fazer esquecer que é a própria
Constituição que, ao definir o seu conteúdo obrigatório, determina que, a par da definição
dos poderes das Regiões referidos nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 227.º e da
enunciação das matérias sobre que incide a autonomia legislativa regional (n.º 1 do artigo
228.º), aqueles estatutos definam o estatuto dos titulares dos seus órgãos de governo
próprio (n.º 7 do artigo 231.º), não se justificando qualquer restrição deste último conceito
em termos de dele excluir a matéria das incompatibilidades.
. . . .
3 Neste sentido, por exemplo, Jorge Reis Novais, Separação de poderes e limites da competência legislativa da
Assembleia da República, Lisboa, Lex, 1997, p. 59 ss.; Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., cit., p. 560;
Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, tomo I, 2.ª ed., Lisboa, D.
Quixote, 2006, p. 137 ss.
4 Jorge Miranda, «Artigo 2.º», in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I,
Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 63.
35
8. Demonstrado que a definição do estatuto dos titulares de órgãos de governo
próprio das regiões autónomas, designadamente dos deputados das respectivas assembleias
legislativas, é da competência da Assembleia da República, não ao abrigo da alínea m) do
artigo 164.º, mas a coberto da alínea b) do artigo 161.º, por ser matéria que deve ser
definida nos correspondentes estatutos político-administrativos, e não em “lei comum” da
Assembleia da República (supra, n.º 5); que a matéria das incompatibilidade e impedimentos
faz parte integrante do estatuto dos deputados regionais (supra, n.º 6); e que a norma ora em
causa representa materialmente uma alteração ao regime das incompatibilidades e
impedimentos dos deputados regionais (supra, n.º 7), a sua conformidade constitucional
dependia do respeito pelo procedimento legislativo próprio da alteração dos estatutos
regionais, designadamente da apresentação do correspondente projecto pelas assembleias
legislativas regionais (n.os 1 e 4 do artigo 226.º da CRP), que, no caso, manifestamente não
ocorreu, uma vez que a medida legislativa em causa teve na origem duas iniciativas de
Deputados à Assembleia da República (Projectos de Lei n.os 254/X e 366/X).
A solução constitucional de reservar em exclusivo às assembleia legislativas
regionais o poder de elaborar os projectos quer dos estatutos político-administrativos
iniciais, quer das suas alterações (“momento impulsivo”), embora reservando à Assembleia da
República o “momento deliberativo”, adequa-se à concepção da “função estatutária” como sendo
“a actividade regional mais importante, já que é dela que se deriva a vida das próprias entidades
político-territoriais” (MORTATI), mas sem se tratar de um verdadeiro “poder constituinte”, pois
as Regiões são “entes constituídos” que “encontram o fundamento da sua existência e dos seus poderes
não num acto de vontade autónomo e originário, mas numa atribuição conferida pelo poder constituinte”
(E. GIZZI) [...].
. . . .
9. [A conclusão de que há inconstitucionalidade do procedimento legislativo] não se
mostra susceptível de ser ultrapassada pelo apelo, de acordo com o princípio da unidade da
Constituição, a outras normas ou princípios constitucionais.
. . . .
9.2. Não é, assim, salvo o devido respeito, sustentável, designadamente por apelo ao
princípio da unidade do Estado, a existência de uma “concorrência de competências” entre
“lei comum” da Assembleia da República (que trataria das incompatibilidades e
impedimentos dos deputados regionais por causas “nacionais”) e “lei estatutária” da mesma
Assembleia (que trataria das incompatibilidades e impedimentos dos deputados regionais
por causas “regionais”) [...].
9.3. Por último, qualquer que seja o juízo que possa merecer o mérito da situação
jurídica actualmente existente, o que surge como insustentável é que dele se pretenda
extrair justificação para o desrespeito das claras normas constitucionais que reservam à iniciativa
das assembleias legislativas regionais a proposta de alteração dos respectivos
Estatutos Político-Administrativos, designadamente na parte relativa ao estatuto dos
36
titulares dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, que integra o conteúdo
necessário daqueles Estatutos.
COMENTÁRIO
A questão versada neste acórdão não é inédita na jurisprudência constitucional, uma
vez que já no Acórdão n.º 637/95, tinham ficado assentes as seguintes três ideias: (i) os
deputados das assembleias legislativas regionais devem ser considerados “titulares de cargos
políticos” para efeitos da imposição constitucional do [actual] artigo 117.º, n.º 2, da CRP;
(ii) desde a revisão constitucional de 1982, o estatuto dos titulares dos órgãos de governo
próprio das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos político-administrativos
(conforme o disposto no artigo 231.º, n.º 7, na sua numeração actual); (iii) não obstante a
formulação abrangente da alínea m) do artigo 167.º, a mesma não abarca a fixação do
regime estatutário dos titulares de cargos políticos do governo próprio das Regiões
Autónomas; como então igualmente se disse, se é certo que a competência cabe à
Assembleia da República, a iniciativa legislativa está reservada em exclusivo às assembleias
legislativas regionais, devendo a matéria ser definida nos correspondentes estatutos
político-administrativos (e não em “lei comum” da Assembleia da República).
Em 2007, o problema político-constitucional agudizou-se em virtude, entre outros,
de dois factores políticos: a tensão crescente entre o Governo da República (XVII
Governo Constitucional, de maioria absoluta do Partido Socialista) e o governo regional da
Madeira (de sucessivas maiorias absolutas do Partido Social Democrata) – tensão agravada
pela aprovação de uma nova Lei das Finanças Regionais (cujo decreto, ainda que com
quatro votos de vencido, não foi objecto de pronúncia de inconstitucionalidade pelo
Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 11/2007) e que viria a desembocar na demissão
do governo regional e na realização de eleições antecipadas na Região Autónoma da
Madeira; e o facto de, diversamente do que ocorreu nos Açores, se verificar uma patente
inércia por parte da assembleia legislativa regional da Madeira a respeito da definição dos
impedimentos dos deputados regionais (de forma a impedir a intervenção dos mesmos em
assuntos em que sejam interessadas empresas regionais a que estejam ligados), de molde a
permitir uma equiparação do regime de incompatibilidades e impedimentos dos deputados
regionais ao dos Deputados à Assembleia da República.
Na verdade, o próprio Tribunal Constitucional não deixou, neste acórdão, de ter
presente o risco de a reserva de iniciativa das assembleias legislativas regionais poder
originar situações de indesejável rigidez estatutária. E perante a questão de saber como pode
ser superada essa inércia regional («sobretudo em hipóteses em que a manutenção do estatuto
existente se mostre susceptível de ser acusada de desconformidade com normas ou
princípios constitucionais, designadamente supervenientes»), o Tribunal respondeu com as
palavras de Gomes Canotilho: a única via para modificar o status quo estatutário é a «da
revisão constitucional com a eventual consagração do poder de a Assembleia da República
37
se substituir aos “parlamentos regionais” quanto à própria iniciativa de alterações aos
estatutos».
Na resolução do problema colocado no pedido, o Tribunal Constitucional, se é
verdade que não deixa de recorrer a elementos históricos, segue uma linha puramente
subsuntiva de argumentação: considera violadas «as claras normas constitucionais», em
especial a regra do artigo 231.º, n.º 7, da CRP; consequentemente, perante essas regras,
recusa o apelo a princípios constitucionais, como o da unidade do Estado, do Estado de
Direito democrático ou da igualdade, mesmo estando em causa o incumprimento parcial da
imposição legislativa presente no artigo 117.º, n.º 2, da CRP. O afastamento metodológico
é por isso total relativamente à primitiva relatora, que se viu por isso obrigada a lavrar um
voto de vencido (defendendo uma solução puramente sustentada em princípios).
Desta jurisprudência decorre ainda implicitamente o reconhecimento do relevo
político-constitucional1 e dogmático das designadas “leis reforçadas pelo procedimento”,
categoria particularmente importante para um sector da doutrina2, de que constituem
subtipo relevante as leis relativamente às quais esteja constitucionalmente consagrada uma
reserva de iniciativa (leis que, por essa via, gozam de uma acrescida força formal negativa,
como está bem patente neste acórdão).
Na Constituição de 1976, os estatutos político-administrativos são leis reforçadas
pelo procedimento a mais do que um título: (i) pela reserva de iniciativa a que estão
submetidos (artigo 226.º, n.º 1); (ii) pela necessidade de colher a apreciação e o parecer da
assembleia regional em caso de rejeição do projecto ou de lhe serem introduzidas alterações
pela Assembleia da República (artigo 226.º, n.º 2); e (iii), desde 2004, pelo facto de as
disposições estatutárias que enunciem as matérias que integram o respectivo poder
legislativo carecerem de aprovação por maioria de dois terços dos Deputados presentes,
desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (artigo
168.º, n.º 6, alínea f)).
IV – DROIT CONSTITUTIONNEL NORMATIF
4.1. Regime das precedências protocolares e do luto regional
Acórdão n.º 258/2007, de 17 de Abril
(Diário da República, 1.ª série, n.º 93, de 15 de Maio de 2007, p. 3230-3252)
1 Segundo Carlos Blanco de Morais, a lei reforçada pelo procedimento preenche aqui três fins de política
constitucional: a garantia qualificada da participação dos órgãos representativos regionais, a garantia de que a
norma estatutária não é alterada unilateralmente pelo Estado e a estabilização de um instrumento normativo
multifuncional (cfr. As Leis Reforçadas, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, p. 784).
2 Por todos, cfr. Blanco de Morais, As Leis Reforçadas, cit., p. 693 ss., 778 ss., 812 ss., 855 ss., 1032 ss.
38
Palavras-chave: poderes legislativos regionais; evolução histórica; revisões constitucionais; reserva de
competência dos órgãos de soberania; âmbito regional; matéria de interesse específico; matéria enunciada no
Estatuto; “reserva da República”.
[O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores requereu a fiscalização preventiva da
constitucionalidade de alguns preceitos do decreto regional que estabelecia o regime das precedências
protocolares e do luto regional (decreto n.º 8/2007/A), por violação dos três parâmetros da competência
legislativa regional definidos no artigo 112.º, n.º 4, e 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição e por violação do
estatuto constitucional do Primeiro-Ministro, do Representante da República e da Assembleia Legislativa
Regional.
Com apenas um voto de vencido, o Tribunal dará provimento ao pedido, depois de traçar um amplo
panorama sobre a competência legislativa regional ao longo das três décadas de vigência da Constituição e de
analisar o sentido das alterações decorrentes da revisão constitucional de 2004.]
____________
Pronúncia do Plenário do Tribunal Constitucional. . . .
7.2. [Quanto ao requisito da] reserva de competência própria dos órgãos de soberania, desde
cedo constituiu orientação do Tribunal Constitucional a rejeição de uma interpretação
restritiva ou literal, que a confinasse ao elenco taxativo das competências
constitucionalmente reservadas, de forma explícita, à Assembleia da República e ao
Governo [...].
. . . . [Escreveu-se] no Acórdão n.º 711/97:
“6. A Constituição, ao indicar os limites dos poderes legislativos das regiões
autónomas, não fornece uma definição das matérias «reservadas à competência própria dos órgãos
de soberania» [artigo 227.º, n.º 1, alínea a)] ou das matérias «reservadas à Assembleia da República
ou ao Governo» (artigo 112.º, n.º 4). Uma tal definição encontra-se, no entanto, na
jurisprudência do Tribunal Constitucional, a qual continua válida em face do texto da
Constituição emergente da Revisão Constitucional de 1997.
Segundo a jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal, matérias reservadas à
competência própria dos órgãos de soberania e, como tais, vedadas ao poder legislativo regional,
são, desde logo, as que integram a competência legislativa própria da Assembleia da
República, enumeradas nos artigos 161.º, 164.º (reserva absoluta) e 165.º (reserva relativa)
da Constituição, bem como a que é da exclusiva competência legislativa do Governo, ou
seja, a matéria respeitante à sua própria organização e funcionamento (artigo 198.º, n.º 2).
Mas, como tem sublinhado o Tribunal Constitucional, embora com vozes
discordantes, as matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania não se
39
circunscrevem às que constituem a reserva de competência legislativa da Assembleia da
República e do Governo. A tal competência acham-se também «reservadas todas as matérias
que reclamem a intervenção do legislador nacional». Com efeito, «o carácter unitário do Estado e os laços
de solidariedade que devem unir todos os portugueses exigem que a legislação sobre matéria com relevo
imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida pelos órgãos de soberania (Assembleia da
República ou Governo), devendo ser estes a introduzir as especialidades ou derrogações que se mostrem
necessárias, designadamente por, no caso, concorrerem interesses insularmente localizados». Os referidos
princípios da unidade do Estado e da solidariedade entre todos os portugueses reclamam,
assim, a intervenção do legislador nacional nas matérias que se apresentam com relevo imediato
para a generalidade dos cidadãos ou que respeitam ou se repercutem nas diferentes parcelas do território
nacional [...]”.
. . . .
7.3. A versão originária da Constituição era omissa quanto à noção de lei geral da
República. Na primeira revisão constitucional (1982), o artigo 115.º, n.º 4 (mantido na versão
de 1989) definiu as leis gerais da República como “as leis e os decretos-leis cuja razão de ser
envolva a sua aplicação sem reservas a todo o território nacional”, tendo a revisão de 1997 (artigo
112.º, n.º 5) eliminado o inciso “sem reservas” e aditado, no final, a expressão “e assim o
decretem”, e, como se assinalou, restringido a limitação da autonomia legislativa regional ao
respeito pelos princípios fundamentais de tais leis.
. . . .
8. Recordado o modelo de definição da competência legislativa regional instituído
pela Constituição de 1976 e cujas linhas mestras se mantiveram até à 6.ª revisão constitucional,
é tempo de analisar as radicais alterações introduzidas em 2004, que, como já se
referiu, consistiram no abandono dos requisitos relacionados com o interesse específico e os
princípios fundamentais das leis gerais da República, na introdução do conceito de âmbito regional,
na remissão para os estatutos político-administrativos da enunciação das matérias passíveis de
legislação regional e na manutenção da exclusão das matérias reservadas aos órgãos de soberania.
O processo de revisão constitucional de 2004 teve como um dos seus objectivos
essenciais – senão mesmo o principal – a redefinição do estatuto constitucional das autonomias
regionais, em especial no que concerne à competência legislativa regional, matéria
sobre a qual praticamente todos os projectos de revisão apresentados inseriram propostas
de alterações substanciais.
. . . .
No entanto, crê-se não ser abusivo associar a expressão “âmbito regional”, para além
de uma referência territorial, às expressões “matérias que dizem [digam] respeito às Regiões
Autónomas”, constantes dos Projectos de revisão constitucional n.ºs 2/IX e 3/IX,
definidas “em função da especial configuração que as matérias assumem na respectiva
região” (como se lê na exposição de motivos do Projecto de revisão constitucional n.º
1/IX), e surgindo aquela expressão como sucedânea da anterior menção a “matéria de
40
interesse específico para as respectivas regiões”, ainda utilizada nos Projectos de revisão
constitucional n.os 4/IX e 6/IX.
. . . .
10. [Como se assinalou], o primeiro parâmetro da competência legislativa regional
que o requerente considera violado pelas normas questionadas respeita ao “âmbito
regional”, que não se limitaria ao âmbito territorial, no sentido de que a legislação regional
tem o seu campo de aplicação espacialmente limitado ao território da Região, mas incluiria
uma componente institucional, que impediria “os Parlamentos insulares de emanar legislação
destinada a produzir efeitos relativamente a outras pessoas colectivas públicas que se encontram fora do
âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas [...]”.
. . . .
Assumindo o requisito do “âmbito regional” uma componente territorial e uma
componente material, há que reconhecer que esta última dimensão foi desrespeitada pelas
normas questionadas quando pretendem regular o protocolo de cerimónias que, apesar de
realizadas no território da Região, são promovidas por entidades públicas que não são
“órgãos regionais” e quando abrangem nessa regulação entidades que, designadamente,
“representam” órgãos de soberania.
. . . .
Conclui-se, assim, que a iniciativa legislativa em análise, quando pretende estabelecer
o regime protocolar aplicável a cerimónias promovidas por entidades públicas que, apesar
de sedeadas na Região Autónoma dos Açores, se encontram fora do âmbito de jurisdição
dos órgãos regionais e abrangendo nessa regulação entidades que, designadamente,
representam órgãos de soberania, desrespeita o limite da competência legislativa regional
que a confina ao “âmbito regional”.
COMENTÁRIO
O acórdão aqui analisado é o primeiro, desde a revisão constitucional de 2004, a
debruçar-se com alguma profundidade sobre a nova configuração das competências
legislativas das regiões autónomas, ganhando ainda relevo pelo facto de nele ser feita uma
detida excursão sobre o quadro (tendo aí em conta o texto, a doutrina e a jurisprudência)
anterior a essa revisão de 2004 (ponto 7 da decisão).
Num pano de fundo de avanços e recuos erráticos1, em matéria de poder legislativo
das regiões autónomas, pode talvez afirmar-se que o desenvolvimento constitucional tem
sido marcado neste domínio pela confluência das seguintes três linhas:
(i) Uma pretensão de reforço da competência legislativa regional a cada revisão
1 Cfr. Carlos Blanco de Morais, O défice estratégico da ordenação constitucional das autonomias regionais, separata
da ROA, Lisboa, 2006, p. 1155.
41
constitucional (em especial, nas revisões de 1989, 1997 e 2004)2;
(ii) Em sentido contrário, a sistemática leitura restritiva e centralista desses poderes
legislativos por parte do Tribunal Constitucional (como é patente no recorte dado
a conceitos como “interesse específico”, “leis gerais da República”, “âmbito
regional” ou na franca desconsideração do sentido global das mudanças
constitucionais pretendidas);
(iii) O desaproveitamento pelas assembleias legislativas de muitas das inovações
sucessivamente introduzidas na Constituição, o que se revela flagrante no caso
das autorizações legislativas (admitidas desde 1989 e substancialmente reforçadas
em 2004, mas não efectivamente solicitadas à Assembleia da República).
Para Carlos Blanco de Morais, no plano das revisões constitucionais e em matéria de
repartição de competências legislativas regionais, a periodificação a estabelecer seria a
seguinte: 1.º) período (1976/1989): modelo embrionário de vinco centralista; 2.º período
(1989/1997): ficção de novas competências legislativas; 3.º período (1997/2004): pseudodevolução
de poderes; 4.º período (2004): desabamento parcial do modelo anterior e
devolução de poderes legislativos com separação de âmbitos materiais3.
Segundo o artigo 112.º, n.º 4, da CRP, os decretos legislativos regionais (1) têm
âmbito regional, (2) versam sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo
da respectiva região autónoma (3) que não estejam reservadas aos órgãos de soberania.
Ora, é sobre cada um destes três parâmetros ou requisitos, na forma que apresentam no
período pós-2004, que se detém a decisão em análise.
Assim, relativamente ao primeiro parâmetro, a doutrina do acórdão parece clara: o
critério do “âmbito regional” integra uma componente territorial e uma componente
material (ou institucional). No entanto e por apelo aos trabalhos preparatórios da revisão,
deixa-se no ar a hipótese – não pouco surpreendente – de afinal essa expressão ser
sucedânea da anterior menção a “matéria de interesse específico”.
Quanto ao segundo parâmetro, ele não foi objecto de consideração tão aprofundada,
cingido que se esteve à disposição transitória da lei de revisão.
Já relativamente ao terceiro parâmetro, o Tribunal Constitucional mais não faz do
que reiterar a sua jurisprudência anterior (como, por exemplo, o que defendeu nos
Acórdãos n.os 91/84, 57/85, 130/85, 164/86, 326/86, 267/87, 268/88, 212/92, 256/92,
348/93, 235/94, 711/97, 491/2004), entendendo que matérias reservadas à competência
própria dos órgãos de soberania são todas as matérias que reclamem a intervenção do legislador
nacional – e não apenas as que constituem a reserva de competência legislativa da
Assembleia da República (artigos 164.º e 165.º) e do Governo (artigo 198.º, n.º 2).
Ora, apesar de ter advertido a existência de vozes discordantes na doutrina, já em face
de versões anteriores da Constituição (veja-se o ponto 7.2. da decisão), o Tribunal parece
2 Para uma síntese, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra
Editora, 2004, p. 169 ss.
3 Cfr. Blanco de Morais, O défice estratégico..., cit., p. 1158-1184.
42
pretender conservar o essencial dos anteriores cânones: o âmbito regional não se afasta do
anterior requisito do interesse específico; o parâmetro do âmbito regional e o parâmetro
negativo da não-reserva dos órgãos de soberania, coordenada ou sincreticamente entendidos,
pouco parecem afastar-se do requisito (afinal só aparentemente removido) do respeito
pelas leis gerais da República (ou, se se preferir, dos princípios fundamentais das leis gerais da
República).
Lembra-se que em acórdãos recentes, pelo menos em relação ao terceiro parâmetro,
o Tribunal parece ter tido uma mais nítida representação da duvidosa sustentabilidade
desse traço da sua anterior jurisprudência, em face do novo texto constitucional (veja-se o
ponto 5.1. do Acórdão n.º 415/2005, evocado também no Acórdão n.º 258/2006).
Sem enfrentar essa dúvida essencial, corre-se o risco de somar, à falta de pensamento
estratégico do legislador de revisão, novas fontes de complicação e incerteza interpretativa,
sem notar sequer a consequência paradoxal de a jurisprudência centralizadora vir a
constituir-se, ela própria, em factor adicional para a reclamação de novos avanços de
autonomia regional; na verdade, mal se compreenderia que critérios jurisprudenciais
concebidos nas décadas de 80 e 90 pudessem funcionar nos mesmos moldes, perante
inovações constitucionais posteriores rasgadamente favoráveis a um alargamento da
competência legislativa regional, quando essas inovações são qualificadas pelo próprio
tribunal como “profundas” e “radicais” (Acórdãos n.ºs 246/2005, 258/2006).
4.2. Extradição para a União Indiana
Acórdão n.º 384/2005, de 13 de Julho de 2005
(Diário da República, 2.ª série, n.º 181, de 20 de Setembro de 2005, p. 13 605- 13 624)
Palavras-chave: repressão de atentados terroristas à bomba; convenção internacional; extradição; pena de
morte; pena de prisão perpétua; comutação de pena; aplicação da norma constitucional no tempo; critério da
norma mais favorável; actos jurídicos unilaterais; princípio do contraditório; objecto do recurso.
[A União Indiana solicitou a Portugal, ao abrigo da Convenção Internacional para a Repressão de Atentados
Terroristas à Bomba (Convenção de Nova Iorque, de 1998), a extradição de um seu nacional a fim de ser julgado
pelos crimes nesse pedido elencados, alguns dos quais abstractamente puníveis com pena de morte e pena de
prisão perpétua.
O Procurador-Geral da República emitiu parecer no sentido da admissibilidade do pedido, por, relativamente
aos crimes abstractamente puníveis com pena de morte, resultar do artigo 34.º- C do Extradition Act de 1962,
da União Indiana, a comutação dessa pena em pena de prisão perpétua, e por, relativamente aos crimes
puníveis com prisão perpétua, existirem garantias bastantes das autoridades indianas no sentido da não
execução dessa pena. A Ministra da Justiça, por despacho de 28 de Março de 2003, considerou admissível o
pedido de extradição.
43
Tendo o Ministério Público requerido ao Tribunal da Relação de Lisboa a concessão da extradição,
procedeu-se à audição do extraditando, que declarou não dar o seu consentimento à extradição, vindo o
Tribunal da Relação de Lisboa, num primeiro acórdão, a decidir autorizar a extradição para a União Indiana
para o extraditando aí ser julgado pelos crimes constantes do pedido formulado pelo Ministério Público, com
excepção dos puníveis com pena de morte ou com pena de prisão perpétua. Este acórdão foi anulado por
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Junho de 2004, designadamente por vícios de falta de
fundamentação de facto. Na sequência dessa anulação, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu um segundo
acórdão, de 14 de Julho de 2004, com o mesmo conteúdo decisório do primeiro.
Foram interpostos dois recursos contra o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo
Tribunal de Justiça: um, pelo Ministério Público, propugnando o deferimento do pedido de extradição
“também quanto aos crimes punidos com pena de morte ou prisão perpétua”; outro, pelo extraditando, sustentando a
declaração de nulidade do acórdão recorrido. O Supremo Tribunal, a de 27 de Janeiro de 2005, deu
provimento ao recurso do Ministério Público, autorizando a extradição, com vista ao julgamento pela
totalidade de crimes, em acórdão que viria a ser corrigido por um novo acórdão, em de 3 de Março de 2005.
O extraditando interpôs dois recursos para o Tribunal Constitucional, sendo que o recurso efectivamente
apreciado pelo Tribunal Constitucional teve como objecto uma determinada dimensão normativa do
princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. Com um voto de
vencido, a 2.ª Secção do Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso interposto.]
_____________
Julgamento da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional. . . .
20 – . . . . De quanto se expôs conclui-se que a regra a adoptar quanto à aplicação no
tempo das normas constitucionais relativas à autorização de extradição deve ser a de
considerar relevante a redacção da Constituição vigente à data da formulação do pedido de extradição,
só sendo aplicáveis normas constitucionais supervenientes se se mostrarem mais favoráveis
para o extraditando. [...]
Há, pois, que considerar como parâmetro constitucional relevante, no presente caso,
a redacção constitucional vigente à data do pedido de extradição, isto é, a redacção
constitucional emergente da revisão de 2001, só sendo de aplicar as alterações introduzidas
pela revisão de 2004 se estas se mostrassem mais favoráveis ao extraditando.
. . . .
23 – . . . . Neste contexto, é possível, desde já, concluir que a nova redacção não é
mais favorável para o extraditando. Ela será idêntica à anterior se, como no ponto seguinte
se apurará, já perante a redacção de 1997/2001 se devesse reportar a reciprocidade ao dever
de extraditar; e será mais desfavorável se se entender, como o recorrente sustenta, que as
condições de reciprocidade constantes de convenção respeitavam às garantias. De uma
forma ou de outra, não sendo a versão de 2004 mais favorável, ela, de acordo com o
critério definido supra, no n.º 20, não será aplicável ao caso dos autos, mas sim a redacção
de 1997/2001.
44
. . . .
24 – Como se referiu, foi com a introdução do n.º 5 do artigo 33.º da CRP pela
revisão de 1997, transferido, sem alteração de redacção, para o n.º 4 do mesmo preceito
pela revisão de 2001, que essa matéria passou a ser tratada de forma expressa no texto
constitucional. A formulação do preceito, na sua literalidade, desde logo aponta para a
sujeição da admissibilidade da extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito
do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade
com carácter perpétuo ou de duração indefinida a dois requisitos distintos, de verificação
cumulativa: (i) existência de “condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional”; e
(ii) oferecimento pelo Estado requisitante de “garantias de que tal pena ou medida de segurança
não será aplicada ou executada”.
. . . . A doutrina e a jurisprudência internacional-publicistas de há muito reconhecem
aos actos jurídicos unilaterais dos Estados natureza jurídica vinculativa, independentemente
de os caracterizar, ou não, também como fonte de direito internacional, e entre esses actos
inclui-se a promessa, entendida como a declaração unilateral de vontade pela qual certo
sujeito se compromete a agir ou não agir de certo modo ou como o compromisso
assumido por um Estado de tomar no futuro determinada atitude [...].
Cingindo-nos aos actos jurídicos unilaterais autónomos, isto é, cuja eficácia não
depende da aceitação de outrem, entre os quais as promessas (ou garantias), a sua
vinculatividade, em termos de direito internacional público, assenta essencialmente no
princípio da boa fé. [...] As específicas categorias de promessas que se traduzem na renúncia
ao exercício de um direito são não só admitidas pela prática dos Estados como a doutrina
lhes atribui carácter obrigatório, com base na confiança que deve presidir às relações
internacionais e a própria natureza dos sujeitos internacionais em causa – os Estados –
justifica que à promessa seja atribuída uma eficácia jurídica mais vasta do que a
normalmente reconhecida pelos direitos internos a promessas de sujeitos privados [...].
. . . . Neste contexto, nenhum razão válida existe para exigir que a prestação de
garantia de não execução de pena de prisão perpétua conste de convenção internacional,
sendo igualmente vinculativos, à luz do direito internacional público, os compromissos
assumidos pelas entidades constitucionalmente competentes para obrigar o Estado
requerente através da emanação de actos unilaterais, como as promessas, observados os
requisitos atrás enunciados.
Conclui-se, assim, não ser constitucionalmente exigível que a prestação de garantias
esteja estabelecida em convenção internacional. Desta apenas tem de constar a consagração
do princípio da reciprocidade quanto ao dever de extraditar: do ut des.
. . . .
25 – . . . . Da natureza judicial do processo de extradição (n.º 7 do artigo 33.º da
CRP), resulta que o juízo da suficiência da garantia há-de caber ao tribunal e não às
autoridades políticas ou administrativas do Estado requerido. Esse juízo cabe naturalmente
ao tribunal comum competente para autorizar a extradição, em cujo âmbito de cognição se
insere a interpretação do direito do Estado requerente pertinente para ajuizar da
45
consistência jurídica da garantia oferecida. Neste domínio, entendendo-se, como se
entende, que esse juízo de suficiência da garantia formulado pelo tribunal penal não se
impõe sempre, como um dado indiscutível, ao Tribunal Constitucional, a intervenção deste
Tribunal cinge-se, no entanto, aos aspectos em que esse juízo interfira directamente com os
requisitos constitucionais, tendo sempre presente que não lhe compete apreciar a
constitucionalidade das decisões judiciais, em si mesmas consideradas, mas apenas dos
critérios normativos por elas aplicados.
COMENTÁRIO
O Tribunal Constitucional produziu a respeito da matéria da extradição e da expulsão
algumas das suas mais notáveis pronúncias (como os Acórdãos n.os 474/95, 962/96,
1146/96, 470/99, 1/2001 ou 232/2004), tendo enfrentado, em especial na década de
noventa, delicados problemas no plano da cooperação internacional com a República
Popular da China (em virtude do precedente estatuto do território de Macau) e com os
Estados Unidos da América (no caso Varizo, por exemplo).
Como é natural, a extradição para países que apliquem penas proibidas pela
Constituição foi sempre motivo de vivo debate, sobretudo nas revisões constitucionais de
1997, 2001 e 2004, que em geral reduziram os efeitos de protecção dessas garantias
constitucionais, colocando desde logo problemas de aplicação da lei constitucional no
tempo (como é patente no caso em apreço, que resolveu o problema com base num
critério de favor libertatis). Diga-se, a esse respeito, que o Tribunal Constitucional jamais se
pronunciou pela inconstitucionalidade de qualquer preceito de lei revisão constitucional,
evitando cuidadosamente o assunto (Acórdão n.º 1/2001).
Tal como a CRP sempre foi uma Constituição aberta e sensível, designadamente ao
aperfeiçoamento da justiça internacional e ao reforço da cooperação internacional, o
Tribunal Constitucional, sem que esteja isento de críticas, parece demonstrar idênticas
abertura e sensibilidade nestes domínios.
Nas relações entre a Constituição e as convenções internacionais, é pacífica e
reiterada a doutrina (por exemplo, patente no Acórdão 416/2003, citado mais à frente) da
primazia da Constituição, mesmo no que concerne às normas de direitos do homem (em
especial à Convenção Europeia dos Direitos do Homem).
Alguma hesitação tem existido apenas a respeito do estatuto a reconhecer à
Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), na presença da regra do artigo
16.º, n.º 2, da Constituição (uma regra cuja invocação pelos interessados é normalmente
desatendida pelo Tribunal Constitucional)1. No Acórdão n.º 582/2000 (por sua vez,
inspirado no Acórdão n.º 345/99), o Tribunal considerou que, de algum modo, o princípio
do contraditório já decorria do artigo 16.º, n.º 2, da Constituição; nessa mesma linha (de
1 Para um elenco, José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na
Constituição portuguesa, vol. II – A construção dogmática, Coimbra, Almedina, 2006, p. 572, nota 115.
46
clara relativização), o Tribunal vem recusando à DUDH a natureza de direito
constitucional, assumindo, em contrapartida, a autonomia da ordem constitucional dos
direitos fundamentais (Acórdãos n.os 352/98, 578/2001 ou 461/2004).
4.3. Direitos aduaneiros
Acórdão n.º 60/2006, de 18 de Janeiro de 2006
(Diário da República, 2.ª série, n.º 41, de 17 de Fevereiro de 2006, p. 2878-2883)
Palavras-chave: direitos aduaneiros; prevalência do Direito comunitário; justificação da regulamentação
comunitária
[Uma determinada sociedade comercial apresentou, em 8 de Setembro de 2003, no âmbito de processo de
execução fiscal, com vista à cobrança de dívidas de IVA e de direitos aduaneiros, um requerimento de
suspensão desse processo executivo.
Tendo vista desatendida no Tribunal Administrativo e Fiscal reclamação contra o indeferimento da sua
pretensão, que invocou o princípio da primazia das normas de direito comunitário, a empresa interpôs
recurso desta sentença para o Supremo Tribunal Administrativo.
Por acórdão de 2 de Março de 2005, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso,
desatendendo a questão de constitucionalidade (aí suscitada pela recorrente) de uma determinada
interpretação do n.° 6 do art. 169.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. É deste acórdão
que a empresa vem a interpor recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional.]
____________
Julgamento da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional. . . .
2.3. – Do exposto [ou seja, de uma demorada consideração da jurisprudência interna
e da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias em matéria de
direitos aduaneiros] resulta que a norma impugnada encontra a sua fundamentação na
necessidade de, estando em causa execução fiscal de dívidas de recursos próprios
comunitários, designadamente – como no presente caso ocorre – direitos aduaneiros,
acatar a regra, constitucionalmente aceite, da prevalência da regulamentação comunitária
sobre o direito ordinário interno. E a intervenção da regulamentação comunitária justificase
– como se salientou no citado acórdão do STA de 28 de Janeiro de 1998 – pela
necessidade de defesa de interesses próprios comunitários [...].
. . . . Neste contexto de interpenetração das duas ordens jurídicas, comunitária e
nacional, os entendimentos jurisprudenciais, quer do Tribunal de Justiça das Comunidades
Europeias, quer do Supremo Tribunal Administrativo, confluem no delinear de um sistema
cujos traços fundamentais foram descritos nos dois pontos anteriores deste acórdão.
47
COMENTÁRIO
É pacífica na jurisprudência (constitucional e ordinária) portuguesa a aceitação do
primado do Direito comunitário sobre o direito interno ordinário (Acórdão n.º 60/2006).
Menos pacífica é já a dilucidação das relações entre a norma constitucional e a norma
comunitária, problema que o Tribunal Constitucional tem prudentemente evitado (embora
tenha estado dele próximo no Acórdão n.º 339/2002).
Após a reforma de 2004, que aditou um número 4 ao artigo 8.º da Constituição, um
grupo de Professores de Direito chegou a apresentar ao então Presidente da República uma
petição para que fosse suscitada fiscalização sucessiva da constitucionalidade da lei de
revisão – pedido que não veio a ser atendido. Por seu lado, e já depois dos referendos
francês e holandês (em meados de 2005), foi aprovada nova revisão constitucional (a 7.ª
revisão da CRP), que aditou o actual artigo 295.º. Curiosamente, após a Declaração de
Berlim, parece desenhar-se um movimento ao nível dos órgãos de soberania no sentido de
pretender evitar o referendo para a aprovação de um novo tratado europeu.
Tem sido entendido na doutrina que o artigo 8.º, n.º 4, adoptou a doutrina dos contralimites,
elaborada pelos tribunais constitucionais italiano e alemão, e até de modo mais
amplo do que a configurada por estes, à luz do recurso ao conceito de “princípios
fundamentais do Estado de Direito democrático”1. Nesses princípios cabe, por certo, o
essencial do sistema de direitos, liberdades e garantias, a independência dos tribunais e o
respeito do princípio democrático (quer na vertente do pluralismo político, quer nas
vertentes da democracia participativa e da democracia económica, social e cultural).
Por esse prisma, a interpenetração das duas ordens jurídicas (referida neste acórdão)
não impede que seja diferenciada a perspectiva de cada uma, na medida em que o n.º 4 do
artigo 8.º acaba (num efeito positivo dessa nova previsão, mais ainda após o fracasso da
“Constituição Europeia” que o tinha inspirado) precisamente por assinalar a autonomia do
sistema jurídico português, ao esclarecer a quem pertence a competência das competências para
definir o regime do direito da União e das Comunidades Europeias no universo da ordem
jurídica portuguesa2.
1 Miguel Galvão Teles, «Constituições dos Estados e eficácia interna do Direito da União Europeia e das
Comunidades e Europeias», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, no centenário do seu
nascimento, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 318 ss.
2 M. Galvão Teles, «Constituições dos Estados...», cit., p. 329.
48
V – JUSTIÇA CONSTITUCIONAL
5.1. Oportunidade de defesa
Acórdão n.º 416/2003, de 24 de Setembro
(Diário da República, 2.ª série, n.º 82, de 6 de Abril de 2004, p. 5488-5497)
Palavras-chave: interrogatório do arguido; comunicação ao arguido dos elementos probatórios;
oportunidade de defesa; igualdade de armas; norma; objecto do recurso; estatuto das convenções
internacionais; protecção das crianças.
[No âmbito de um inquérito criminal, iniciado em 2002, envolvendo múltiplos arguidos – processo que veio a
ficar conhecido como “Processo Casa Pia” –, o arguido H. M. foi detido e sujeito, em 5 de Maio de 2003, a
um segundo interrogatório, findo o qual foi submetido à medida de prisão preventiva. Haveria indícios da
prática, por parte desse arguido, de quatro crimes de lenocínio e de setenta e dois crimes de abuso sexual de
criança.
Contra o despacho do juiz, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação, alegando não ter tido
acesso a quaisquer elementos probatórios, uma vez que apenas fora confrontado com questões genéricas.
Concluía, por isso, que havia violação do artigo 141.º, n.os 1 e 4, do Código de Processo Penal (que obriga à
comunicação ao arguido dos factos e das provas) e que, em todo o caso, a interpretação desses preceitos da
lei processual aplicável fora inconstitucional, por violação dos artigos 27.º, n.º 4, 28.º, n.º 1, e 32.º da
Constituição.
O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, por acórdão de 9 de Julho de 2003. Foi
contra este acórdão que o arguido interpôs o recurso de constitucionalidade, onde obteve provimento
unânime.
Na sequência do julgamento do Tribunal Constitucional, o arguido veio, mais tarde, a ver revogada a medida
de prisão preventiva, tendo-lhe identicamente sido dados a conhecer as provas e os factos indiciários
existentes contra si.]
____________
Julgamento da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional. . . .
9 – Quanto à questão de inconstitucionalidade relativa à não comunicação, no decurso do
interrogatório, dos elementos probatórios em que se alicerçou a imputação dos factos e a
determinação da detenção, entende-se não ser de acolher a objecção ao conhecimento
dessa questão por a mesma carecer de natureza normativa. [...]
Não se pode, assim, aceitar que a presente questão de inconstitucionalidade se
reporte à própria decisão recorrida, que, na aplicação ao caso concreto de um critério
normativo previamente enunciado, teria especificado quais os elementos probatórios
relativos à imputação de ilícitos de natureza sexual que podiam e quais os que não podiam
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ser comunicados ao arguido no decurso do seu interrogatório (especificação esta que, de
todo em todo, não ocorreu). A inconstitucionalidade é imputada a um critério normativo, e
não a uma decisão judicial em si mesma considerada, pelo que nenhum impedimento há ao
seu conhecimento.
. . . .
11 – Conclui-se, assim, que constitui objecto do presente recurso a questão da
inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a “exposição
dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas genéricas e
abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, local e modo em que tais factos
terão ocorrido, e sem comunicação dos elementos probatórios em que se alicerça aquela
imputação e que determinaram a sua detenção.
. . . .
12 – . . . Embora inserido na fase processual do inquérito – cujo dominus é o
Ministério Público – , o interrogatório judicial de arguido detido é um acto jurisdicional
que tem funções eminentemente garantísticas e não de investigação ou de recolha de prova.
Trata-se de um acto subordinado ao princípio do contraditório, em que o arguido surge
como sujeito processual, e não como objecto da investigação, e em que o juiz de instrução
deve tentar minorar, na medida do possível, a desigualdade inicial de que partem Ministério
Público e arguido quanto ao conhecimento dos factos investigados e da prova recolhida.
. . . .
13 – . . . . Na comunicação dos factos, não se pode partir da presunção da
culpabilidade do arguido, mas antes da presunção da sua inocência (artigo 32.º, n.º 2, da
CRP). Assim, o critério orientador nesta matéria deve ser o seguinte: a comunicação dos
factos deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente
dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico-criminal,
por forma a que lhe seja dada “oportunidade de defesa” (artigo 28.º, n.º 1, da CRP). . . .
Em face do exposto, impõe-se a conclusão de que o critério normativo seguido, do
qual resultou a não comunicação ao arguido ora recorrente dos factos concretos que lhe
eram imputados, não permite assegurar a sua oportunidade de defesa em relação às causas
que determinaram a sua detenção (artigo 28.º, n.º 1, da CRP). Numa situação, como a
presente, que supostamente se prolongou ao longo de um ano, com prática reiterada de
actos de índole sexual, não seria, certamente, exigível uma exaustiva pormenorização, com
indicação precisa das datas de cada um desses actos, do conteúdo concreto de cada um
deles ou da respectiva duração. Mas seria indispensável que ao arguido fosse dado
conhecimento das circunstâncias essenciais à sua defesa [...].
Ao interpretar a norma do n.º 4 do artigo 141.º do CPP como dispensando esta
concretização mínima, as instâncias violaram o disposto nos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1,
da CRP.
. . . .
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15 – Quanto ao último fundamento utilizado no acórdão recorrido, há que começar
por referir que a invocação da Convenção dos Direitos das Crianças como tendo valor
idêntico à lei constitucional é improcedente e desnecessária.
Na verdade, o que se discutiu na jurisprudência e na doutrina foi a eventual
supremacia do direito internacional convencional sobre o direito interno ordinário, em
termos de este não poder validamente revogar aquele, e nunca a paridade entre o direito
internacional convencional e o direito constitucional, tese de todo em todo insustentável
face à previsão da fiscalização da constitucionalidade dos tratados e acordos internacionais
(artigos 278.º, n.º 1, e 279.º, n.os 1 e 4, da CRP). E tal invocação era desnecessária porque a
especial protecção das crianças, como incumbência do Estado, tem consagração no artigo
69.º, n.º 1, da CRP.
COMENTÁRIO
Pela sua manifesta relevância, a justiça constitucional, em algumas das Faculdades de
Direito portuguesas, constitui objecto de disciplina autónoma (contando com o apoio de
verdadeiros manuais)1. Para isso terá contribuído certamente a complexidade do sistema de
controlo da constitucionalidade instituído pela Constituição, mas sobretudo a efectiva e
profunda influência da jurisprudência constitucional na ordem jurídica portuguesa como
um todo.
Partindo deste Acórdão n.º 416/2003, há dois traços reveladores dessa dinâmica da
justiça constitucional a assinalar agora: a ampliação do objecto de recurso a interpretações
normativas e o reconhecimento da difícil fronteira entre o recurso de normas e o recurso de
decisões.
Tendo como pressuposto a distinção entre texto e norma, há muito que o Tribunal
Constitucional vem entendendo que o objecto de fiscalização não é constituído apenas (ou
sequer) pelos enunciados. Na verdade, a fiscalização (tanto a sucessiva abstracta como a
concreta, mas já não a fiscalização preventiva) pode apenas incidir sobre uma determinada
interpretação (ou dimensão normativa), seja ela extraída de um pequeno segmento textual,
de um conglomerado de elementos textuais ou de dimensões normativas construídas com
base na relação entre texto e as circunstâncias do caso.
O fenómeno (que não está ausente da fiscalização abstracta) é particularmente visível
na fiscalização concreta, onde, para o sucesso de um recurso de constitucionalidade, se
torna cada vez mais evidente a necessidade do preenchimento de duas condições: a boa
preparação jurídico-constitucional dos profissionais do foro; e a capacidade de, a partir de
um despacho ou de uma sentença, reconstruir interpretativamente a, porventura complexa,
regra do caso (como dá nota eloquente este acórdão).
1 Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional – tomo I, Garantia da Constituição e controlo da
constitucionalidade, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2006; tomo II – O contencioso constitucional português entre o
modelo misto e a tentação do sistema de reenvio, Coimbra, Coimbra Editora, 2005.
51
Ao afirmar, no ponto 9 do acórdão, que não se pode aceitar que a questão de
inconstitucionalidade se reporte à própria decisão recorrida (em vez de a um critério
normativo), o Tribunal Constitucional está precisamente a reconhecer o inverso: está a
reconhecer que se encontra numa nebulosa zona de fronteira entre a apreciação de decisões
e a apreciação de normas2.
Dois indícios de que essa fronteira foi inclusivamente ultrapassada, neste caso, estão
bem presentes no facto de o Tribunal Constitucional ter tido necessidade de solicitar as
peças processuais relativas ao interrogatório do arguido e na própria extensão e sofisticação
semântica da interpretação normativa que veio a ser objecto do recurso.
Ora, se esta extensão do objecto de recurso apresenta vantagens, pelo alargamento da
tutela subjectiva que propicia, não está isenta de objecções, nomeadamente pela
manipulação das competências de controlo (através da construção, muitas vezes, forçada e
sinuosa da norma) e pela insegurança a que necessariamente dá lugar. Por seu turno,
tecnicamente, segundo alguma doutrina, o Tribunal deveria claramente assumir que, em
muitos desses casos, não está apenas a proceder ao controlo da constitucionalidade de
normas, mas também (ou sobretudo) à apreciação de uma «violação» (enquanto modalidade
de afectação inconstitucional) de um direito fundamental ou dos efeitos de protecção de um
direito fundamental3.
5.2. Utilização da informática (1989)
Acórdão n.º 182/89, de 1 de Fevereiro
(AcTC, vol. 13 – I, p. 135 ss.)
Palavras-chave: protecção dos dados pessoais; necessidade de mediação legislativa; inconstitucionalidade por
omissão.
[O Provedor de Justiça requereu em 1987 que fosse verificado o incumprimento da Constituição por omissão
das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis os n.os 2 e 3 do artigo 35.º da Constituição.
Esses preceitos haviam sido aditados na revisão constitucional de 1982 e, transcorridos cinco anos, não se
conheciam actos positivos que definissem as excepções à regra da proibição do acesso de terceiros a ficheiros
com dados pessoais, nem tão-pouco a definição de dados pessoais.
Em decisão unânime, o Tribunal deu por verificada a omissão legislativa. Na sequência do acórdão, o
Parlamento viria a reparar a mesma através da aprovação da Lei n.º 10/91, de 29 de Abril (Lei da protecção
de dados pessoais face à informática).]
_____________
2 Jorge Reis Novais, «Em defesa do recurso de amparo constitucional (ou uma avaliação crítica do
sistema português de fiscalização concreta da constitucionalidade)», in Themis, vol. 10 (2005), p. 107 ss.
3 José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa,
vol. II – A construção dogmática, Coimbra, Almedina, 2006, p. 487; Idem, Direitos Fundamentais – Introdução Geral,
Estoril, Principia, 2007, p. 103 s.
52
Julgamento do Plenário do Tribunal Constitucional . . . .
[O actual artigo 283.º da Constituição estabelece que o Tribunal Constitucional]
aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas
necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais.
. . . . [Proibindo] aquele n.º 2 o acesso de terceiros a ficheiros com dados pessoais,
salvo em casos excepcionais previstos na lei, e remetendo o n.º 4 para a lei a definição de
dados pessoais, é evidente a necessidade da mediação legislativa ou interpositio legislatoris,
expressa no n.º 4, para definir o conceito de dados pessoais, a fim de tornar plenamente
exequível a garantia constante do n.º 2. [O Tribunal enumera, em seguida, as sucessivas
iniciativas legislativas apresentadas nesse sentido, que todavia não conseguiram converterse
em lei.]
. . . . Estão pois verificados todos os pressupostos ou requisitos da existência de
inconstitucionalidade por omissão.
COMENTÁRIO
Na sequência de um conjunto de casos apreciados pela Comissão Constitucional
(Pareceres n.os 4/77, 8/77, 11/77, 9/78, 35/79 e 1/81), o Tribunal Constitucional
inaugurou com este Acórdão n.º 182/891, a sua intervenção no âmbito da fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão (artigo 283.º da Constituição).
Ora, apenas em 2002, o Tribunal Constitucional voltará a dar por verificada a
inconstitucionalidade por omissão – no excelente Acórdão n.º 474/2002 (sobre assistência
material no desemprego aos trabalhadores da Administração Pública), já parcialmente
citado nos casos 1.1 e 2.3 e, tal como em 1989, também objecto de decisão unânime.
Porém, tal nem significa que não tenha havido outras decisões, nem significa que
esses processos não tenham tido a necessária relevância político-constitucional: houve, de
facto, outras decisões, como os Acórdãos n.os 276/89 (sobre crimes de responsabilidade
dos titulares de cargos públicos), 36/90 (sobre referendos locais), 351/91 (sobre
comunicação do direito de arrendamento aos filhos menores nascidos fora do casamento),
638/95 (sobre acção popular) e 424/2001 (sobre candidaturas de grupos de cidadãos a
órgãos das autarquias locais); por outro lado, verifica-se que nestes processos acabou por
ser suficiente o desencadeamento do processo de fiscalização para o legislador vir a suprir a
falta de legislação – o que demonstra, porventura ainda melhor, as virtualidades do
instituto.
Vinda da Constituição portuguesa de 1976, esta modalidade de fiscalização foi, como
é sabido, objecto de posterior recepção designadamente na Constituição brasileira de 1988.
1 Para uma anotação, Jorge Miranda, in O Direito, ano 121.º, II, 1989, p. 380 ss.