sexta-feira, 13 de abril de 2012

DIREITOS DE LIBERDADE E DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA

DIREITOS DE LIBERDADE E DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA
Jorge Reis Novais


1. Direitos de liberdade e direitos sociais na encruzilhada das opções
constituintes do período pós-revolucionário
A compreensão, as posições doutrinárias, a prática jurisprudencial
e toda a vivência dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais foram,
entre nós, decisivamente marcadas por duas opções do legislador constituinte de
1976, que, na altura em que foram aprovadas, surgiam como aparentemente simples
e pacíficas, mas que se viriam a revelar da maior complexidade e dificuldade de
construção dogmática até ao presente.
Essas opções foram, em primeiro lugar, a de ter procedido a
uma integração extensivamente discriminada de direitos fundamentais no texto da
Constituição baseada, em termos de sistematização, numa distinção clara entre
direitos de liberdade e direitos sociais (na terminologia constitucional, entre
direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais);
em segundo lugar, e sobretudo, a de ter, concomitantemente, conferido àquele
primeiro tipo de direitos, os direitos de liberdade, um regime
jurídico-constitucional de protecção privilegiada, o chamado regime específico
dos direitos, liberdades e garantias de que falam os Autores.
As coisas pareciam extraordinariamente simples porque
qualquer operador jurídico poderia imediatamente, da leitura mais linear da
Constituição, concluir quais eram uns e outros direitos (os direitos,
liberdades e garantias estão consagrados no título II da Iª parte da
Constituição e os direitos económicos, sociais e culturais, a seguir, no título
III) e, consequentemente, aplicar-lhes o respectivo regime jurídico. Por outro
lado, a apreensão de que regime era esse também não constituiria qualquer dificuldade,
uma vez que a Constituição identificava e discriminava o essencial desse regime
material no art. 18º e, sempre que dispersava o restante regime material, o
regime orgânico e o regime de revisão constitucional dos direitos liberdades e
garantias por outras disposições e partes da Constituição, do enunciado
normativo constava sempre a referência expressa de aplicação de tal regime a
esse tipo de direitos.
No fundo, as opções do legislador constituinte revelavam, de
um lado, uma indiscutível e consensual assunção dos direitos sociais como
direitos fundamentais de valor constitucional, mas, de outro, uma clara
intenção de privilegiar relativamente os direitos de liberdade no conjunto dos
direitos fundamentais.
Por sua vez, estas opções eram o resultado possível dos
consensos e disputas político-constitucionais da época e são perfeitamente
adequadas e razoáveis no contexto em que nasceram. Designadamente, a
"superioridade" tacitamente reconhecida aos direitos de liberdade
fundava-se em dois tipos de preocupações.
A primeira era própria de uma ordem constitucional que
sucedia revolucionariamente à ordem antiga negadora dos direitos fundamentais e
traduzia-se primordialmente numa aspiração de garantia efectiva e imediata da
liberdade. O peso das décadas de uma ordem jurídica anti-liberal não deveria
sobrepor-se a essa aspiração, a inércia do legislador não deveria funcionar
contra a liberdade. A liberdade, e a sua garantia jurídico-constitucional
através dos direitos fundamentais, era de imposição imediata, os direitos de
liberdade eram de aplicação jurídica directa a partir da sua consagração
constitucional, independentemente da ausência transitória da sua conformação
jurídica legal. De resto, a desconfiança relativamente a uma
"entrega" dos direitos fundamentais ao legislador ordinário, que
caracterizara a realidade constitucional do período anterior, estimulava o
consenso em torno dessa ideia.
No entanto, a partir do momento em que aos direitos sociais
fora também reconhecido o estatuto constitucional de direitos fundamentais, era
necessário distinguir. Nem todos os direitos fundamentais eram de aplicação
directa e imediata, ou seja, pela sua própria natureza, os direitos sociais
eram direitos fundamentais de realização diferida no tempo; logo, uma eventual
indistinção em termos de aplicabilidade não faria jus à natureza diferenciada
dos direitos e, sobretudo, poderia contaminar e comprometer, com uma lógica de
menor denominador comum, a aspiração de imediata e efectiva aplicabilidade dos
direitos de liberdade
Portanto, uma distinção constitucional de regimes que
servisse a aspiração de aplicação imediata dos direitos de liberdade era
justificada e consensual, mesmo da parte dos que, apostando decisivamente na
jusfundamentalização dos direitos sociais, não podiam deixar de reconhecer a
diferente natureza de um e outro tipo de direitos. A necessidade de garantir a
aplicabilidade imediata e directa dos direitos de liberdade justificava a
consagração especificada de um regime constitucional próprio deste tipo de direitos,
ao mesmo tempo que, relativamente aos direitos sociais, uma efectividade de
realização gradual e diferida no tempo encontrava expressão noutro tipo de
garantias, precisamente, as que se manifestavam na enunciação pormenorizada e
detalhada dos deveres estatais dessa realização.
E aí entra o segundo tipo de preocupação, ainda mais
directamente política, embora mais simbólica, subjacente à diferenciação
operada pelo legislador constituinte. É que, não obstante o consenso sobre um
elenco abrangente de direitos fundamentais, era latente na sociedade portuguesa
da época o conflito, mais surdo ou
mais estridente, entre modelos opostos e conflituantes de organização social e,
particularmente, o conflito entre os defensores do modelo ocidental de Estado de Direito e os que propugnavam, de
forma mais ou menos difusa ou precisa, um Estado revolucionário anticapitalista[1].
No mundo dos
direitos fundamentais, uns e outros tendiam geralmente, de forma quase natural,
a colocar a tónica, respectivamente, mais
nos direitos de liberdade ou mais nos
direitos sociais. Ora, também aí a Constituição reflectiu, de algum modo, a
vitória político-militar que o primeiro bloco
alcançara no 25 de Novembro de 1975: se o conflito tivesse que ser transposto
para o campo jurídico-constitucional e, especificamente, para o domínio dos
direitos fundamentais, então aquela vitória reflectir-se-ia, como aconteceu,
num claro privilegiar, patente na sistematização e no regime, dos direitos de
liberdade face aos direitos sociais.
No entanto, ao contrário de uma primeira impressão de
simplicidade e aparência de sólido enquadramento dogmático dos direitos
fundamentais que a Constituição parecia proporcionar, as coisa revelar-se-iam
muito mais complexas e aquela intenção originária, comprensível e justificada,
redundaria em factor de dúvida e controvérsia dogmáticas.
Desde logo se comprovava, numa segunda leitura, que, afinal,
no título III ("direitos económicos, sociais e culturais"), bem como
noutras partes da Constituição, havia direitos que eram, verdadeiramente,
direitos de liberdade, mas que também no título II ("direitos, liberdade e
garantias") estavam implicitamente contidos direitos que, verdadeiramente,
não o eram, já que, quando analiticamente decompostos, apresentavam a natureza
e a estrutura típicas dos direitos sociais. Que regime se deveria, então,
aplicar a uns e outros? Dever-se-ia privilegiar a inserção sistemática formal
ou a natureza do direito em causa?
Por um lado, consciente da impossibilidade de resolver todos
os problemas latentes através da reformulação de sistematização e de
classificação, o legislador constituinte procurou responder à dificuldade
também no plano material, substancial. Assim, estabeleceu que o dito regime de
protecção privilegiada próprio dos direitos, liberdades e garantias passaria a
aplicar-se, não apenas "aos enunciados no título II", mas também
"aos direitos fundamentais de natureza análoga" (art. 17º da
Constituição). Sobretudo com esta opção, ficava claro que o critério determinante
da aplicabilidade do regime dos direitos, liberdade e garantias era um critério
material ou que, pelo menos, apelava a uma distinção, de qualificação e de
regime, não definitivamente marcada pela opção de inserção sistemática do
direito em causa no todo da Constituição. Ou seja, um direito beneficiaria ou
não do referido regime de protecção privilegiada consoante fosse, ou não, um
direito de liberdade ou análogo a um direito de liberdade e independentemente
da localização da sua consagração constitucional.
Por outro lado, às dificuldades de inserção sistemática o
próprio legislador da revisão procurou responder com sensatez, isto é, não
unilateralmente, procurando combinar preocupações formais, atinentes ao rigor
de sistematização classificatória, mas também materiais. Assim, o esforço
orientou-se num e noutro sentido. Desde logo, em 1982, a preocupação formal, de
sistematização, traduziu-se na transferência de lugar de alguns direitos de
liberdade dos trabalhadores, do título III para o título II, o que,
aparentemente, correspondia a uma promoção,
pressupondo-se que passariam, pela sua nova inserção sistemática, a dispor da
protecção constitucional privilegiada conferida aos direitos de liberdade. Tal
impressão era, de resto, confirmada, a
contrario, na recusa em proceder a análoga transferência de outras
direitos, como o direito de propriedade e a liberdade de iniciativa económica
privada, tal como era entretanto reivindicado por certos sectores políticos.
Porém, a opção de distinção material entre direitos,
liberdades e garantias e direitos sociais viria a revelar-se tão lógica e
necessária quanto complexa, de concretização controversa. É que, fazendo todo o
sentido que beneficiassem do mesmo regime privilegiado todos os direitos
fundamentais que tivessem a mesma natureza, faltava saber qual era
verdadeiramente o critério de identificação dos direitos elegíveis, o que
significava ser um direito, liberdade ou garantia ou, consequentemente, um
direito análogo a direito, liberdade ou garantia.
E, para o nosso problema, ficava em aberto a questão de
saber quais eram, afinal, os direitos que, no título III da parte I da
Constituição —suposto consagrar os direitos económicos, sociais e culturais—
não beneficiariam de tal regime de protecção privilegiada por não serem
direitos de liberdade ou direitos análogos a direitos de liberdade, ou seja,
quais seriam, afinal, por exclusão de partes, os direitos sociais. Os esforços
de doutrina e jurisprudência para resolver esse problema multiplicaram-se e
desenvolveram-se durante décadas, mas, ao fim de milhares de páginas escritas
sobre o tema, o mínimo que se pode dizer é que estamos muito longe de uma
conclusão aceitável e, muito menos, consensual, do problema. Confrontaremos a
dificuldade a seguir, seguindo de perto o que temos escrito sobre a questão[2].
Esta não é, no entanto, a única dificuldade que cabe superar
para conferir racionalidade e operatividade ao sistema constitucional. É que,
mesmo que fôssemos capazes de identificar claramente os direitos de liberdade e
de os distinguir dos direitos sociais —e tal é tarefa bem mais difícil do que
poderia ser sugerido por aquela primeira leitura da Constituição—, faltaria
ainda saber que regime, então, se não era o próprio dos direitos de liberdade,
deveria ser aplicado aos direitos sociais: um regime constitucional próprio,
específico, diferente e necessariamente diverso, ou, até, eventualmente oposto
ao regime dos direitos, liberdades e garantias? Mas quão diverso, com que
regras ou princípios? E regras e princípios necessariamente distintos, todos
eles, dos aplicáveis aos direitos de liberdade ou haveria regras e princípios
comuns? Quais?
Também relativamente a esta questão a primeira leitura da
Constituição é bem enganadora. De uma primeira leitura qualquer jurista, em
princípio, concluiria o mesmo. Ou seja, se a Constituição contém um conjunto de
princípios gerais que manda aplicar aos "direitos fundamentais" (por
exemplo, os artigos 12º e 13º), logo, incluindo, de acordo com a clara
sistematização constitucional, direitos
de liberdade e direitos sociais, e, depois, enumera alguns princípios
aplicáveis a "direitos, liberdades e garantias" (por exemplo, os
artigos 18º e 19º), a conclusão lógica será a de que estes últimos não seriam
aplicáveis aos direitos sociais, pois, de outro modo, a Constituição tê-los-ia
tratado como aos primeiros princípios, ou seja, referidos como aplicáveis a
todos os direitos fundamentais.
Porém, esta conclusão imediatamente se revela insustentável
quando, por exemplo, o intérprete se confronta com uma norma como a do artigo
19º, segundo a qual os direitos, liberdades e garantias não podem ser
suspensos, a não ser, excepcionalmente, em situação de estado de sítio. De
acordo com a lógica referida, tal significaria que este princípio fosse
exclusivamente aplicável a direitos, liberdades ou garantias. Mas é esta
garantia exclusiva dos direitos de liberdade? Poderão os direitos sociais ser
suspensos por decisão dos poderes públicos? Pode um qualquer direito
fundamental ser suspenso? Se a Assembleia da República ou o Governo, conjunta
ou separadamente, decidissem suspender o direito à protecção da saúde ou o
direito à habitação, não constituiria tal uma inconstitucionalidade gravíssima
e patente?
Ora, quando a mesma perplexidade se pode quase
invariavelmente suscitar a propósito de todas as outras regras e princípios
supostamente próprios, específicos ou exclusivos dos direitos, liberdades e
garantias, é também toda aquela primeira impressão que resultava da leitura
inadvertida da Constituição que é decisivamente posta em causa.
Logo, também no que se refere à questão do regime de
protecção constitucional aplicável aos direitos fundamentais se exige um
esforço de reflexão, e, sobretudo, de resultados que parecem dever ir muito
além daquilo que foi sendo, algo complacentemente, dado como adquirido ao longo
de muitos anos. Designadamente, renova-se a actualidade da questão de saber se
há um regime de protecção constitucional específico, próprio e diverso,
aplicável a direitos de liberdade e a direitos sociais ou se, afinal, há essencialmente
um regime único aplicável a todos os direitos fundamentais e decorrente,
precisamente, dessa natureza comum de jusfundamentalidade material e de
constitucionalização formal. Confrontaremos também o problema a seguir
recorrendo ao que temos escrito sobre ele, com a consciência de que é, entre
nós, uma questão dogmática crucial.
Com efeito, tratar os direitos sociais como beneficiando do
regime de protecção próprio e comum dos direitos fundamentais significa, à
partida, e independentemente das diferenciações que a respectiva especificidade
justificar, poder beneficiar de uma elaboração, um enquadramento e uma
experiência solidificada no Direito comparado ao longo das últimas décadas do
Estado de Direito democrático. Ao invés, recusar-lhes um enquadramento
dogmático comum e próprio dos direitos fundamentais significará a permanência
da fragilidade, da incerteza e da imprevisibilidade que, em grande medida, têm
caracterizado a dogmática dos direitos sociais entre nós.
2. Distinção entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos,
sociais e culturais
A separação estrita entre direitos, liberdades e garantias e
direitos económicos, sociais e culturais na Constituição portuguesa,
respectivamente nos títulos II e III da parte primeira da Constituição, tem
razões e história próprias e, em si mesma, nada teria de problemático. Trata-se
de uma distinção tradicional, baseada numa classificação oriunda do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, sendo uma entre muitas outras
classificações possíveis; logo, a sistematização dos direitos fundamentais
adoptada pelo legislador constituinte português não suscita, por si, quaisquer
reservas.
De acordo com essa sistematização, encontramos integrados
tendencialmente nos direitos, liberdades e garantias os direitos fundamentais
que garantem genericamente o acesso individual a bens de liberdade individual,
autonomia pessoal e participação política e, nos direitos económicos, sociais e
culturais, os direitos fundamentais que garantem o acesso individual a bens
económicos, sociais e culturais relacionados com o bem-estar e as condições de
vida. Por si só, nada há aqui de controverso, nem assumiria qualquer relevância
ou significado especial o facto de algumas Constituições ou documentos de
Direito Internacional inserirem diversamente um ou outro direito num ou no
outro tipo.
A sistematização adoptada pela Constituição portuguesa só se
converte em problema quando dela se pretende retirar, com apoio expresso no
texto constitucional, a existência de um regime de protecção privilegiada
aplicado exclusivamente aos direitos de liberdade que estiverem consagrados no
título II ("direitos, liberdades e garantias"), e aos que tiverem
natureza análoga a eles. Nessa altura, e independentemente de qual seja esse
regime —o que confrontaremos no ponto seguinte—, o intéprete vê-se perante a
necessidade de encontrar o critério substancial ou estrutural que permita
identificar a situação de analogia, em ordem a permitir e fundamentar a
aplicabilidade daquele regime a outros direitos fundamentais não constantes do
título II —desde logo a direitos que integram o título III dos direitos
económicos, sociais e culturais— e que justifique uma protecção jurídica
diferenciada entre uns e outros direitos fundamentais, isto é, direitos que
beneficiam de uma protecção constitucional privilegiada e direitos, em
princípio os direitos sociais, que não gozariam dessa protecção.
Porém, quando no título II encontramos direitos tão
diferentes como as garantias em processo penal, os direitos dos trabalhadores,
os direitos políticos ou os direitos pessoais, é difícil extrair do conjunto a
característica comum que funcione como critério de uma analogia com aquelas
consequências jurídicas. O que apresentam em comum direitos fundamentais como o
direito de antena, o direito à greve, a garantia de identidade genética do ser
humano, as garantias do detido em prisão preventiva, o direito de acesso às
redes informáticas de uso público, o direito de formação de tendência sindical
ou a proibição de partidos regionais?
O que distingue, por sua vez, e para aqueles efeitos de
protecção especial, esse conjunto de direitos de um outro não menos
heterógeneo, os direitos fundamentais do título III, onde encontramos direitos
como o direito ao ambiente, à cultura, à iniciativa económica privada, a férias
periódicas pagas, à proibição de publicidade oculta ou dolosa, à maternidade e
paternidade ou à habitação.
A doutrina e a jurisprudência portuguesas afadigaram-se,
durante décadas, a procurar encontrar um tal critério, mas, no fim de milhares
de páginas escritas sobre o tema[3], os resultados obtidos são
inseguros e controversos, mesmo quando se tenha formado um consenso prático
sobre a qualidade de direito análogo
atribuída a alguns direitos constantes do título III. Por exemplo, o direito de
propriedade privada ou o direito à iniciativa económica privada, apesar de
integrarem a parte dos "direitos económicos", são pacificamente
considerados como direitos análogos a direitos, liberdades ou garantias. Mas em
que se funda tal conclusão, qual o critério, material ou estrutural, que
permite distinguir estes direitos dos restantes direitos constantes da parte
dos direitos sociais?
Por um lado, pode dizer-se que as tentativas substancialistas ou essencialistas, que procuram localizar a diferença identificatória
numa qualidade ou característica material do direito em questão, são mal
sucedidas. Eventuais distinções baseadas em pretensa superioridade hierárquica
dos direitos de liberdade derivada de pretensa maior proximidade à dignidade da
pessoa humana, ao radical subjectivo,
à personalidade humana, à autodeterminação pessoal ou à autonomia subjectiva
chocam com duas dificuldades: primeiro, em Estado social e democrático de
Direito, todos os direitos fundamentais apresentam uma comum referência a esses
princípios ou valores, designadamente à dignidade da pessoa humana; segundo,
mesmo que a distinção material assentasse na inegável diferente natureza
material dos bens jusfundamentalmente protegidos —genericamente, bens de liberdade
ou interesses de bem-estar, respectivamente nos direitos de liberdade e nos
direitos sociais— faltaria fundamentar a justificação de atribuição de um
regime de maior protecção constitucional aos primeiros. Por que razão, com
efeito, em Estado social de Direito, se deveria conferir ao direito de antena
ou ao direito à greve maior protecção constitucional que a conferida ao direito
à protecção da saúde, à habitação ou ao trabalho?
Parecem, então, mais produtivas as tentativas de distinção formal, orientadas pela diferença
estrutural dos dois grandes tipos de direitos. Ou seja, a atribuição de um
regime de protecção privilegiada e distinto não se fundaria em razões de
importância, de fundamentalidade ou relevância material, mas antes em razões
estruturais, de natureza formal, que impediriam um tratamento comum dos dois
tipos de direitos.
Por exemplo, características formais, como as atinentes à natureza negativa ou positiva do
direito em questão, à maior ou menor determinabilidade do seu conteúdo ou à
natureza dos deveres estatais envolvidos na respectiva realização podem
fundamentar mais adequadamente uma possível distinção entre direitos de
liberdade e direitos sociais. No fundo, a ideia seria a de que,
independentemente da respectiva relevância material ou da importância relativa
que lhes fosse atribuída pelos titulares ou pela ordem jurídica, haveria alguns
direitos cuja estrutura e natureza formal estariam mais adaptadas à
aplicabilidade do referido regime que outros.
No entanto, apesar dessa maior tendencial operatividade,
critérios deste tipo só serão admissíveis se tiverem em conta aquela distinção
essencial que sempre vimos assinalando: a distinção entre direito fundamental como um todo e cada um dos direitos,
pretensões, garantias ou faculdades particulares que o integram.
De facto, como temos referido, de nada adianta pretendermos
fundar uma diferença entre o direito à vida e o direito à habitação naquele
tipo de diferenças estruturais quando sabemos que, indiferentemente integrados
num e noutro direito fundamental, encontramos direitos ou faculdades
particulares com a mais variada natureza estrutural. Quer no direito à vida
quer no direito à habitação, considerados como
um todo, encontramos direitos
negativos e positivos, de conteúdo mais
e menos determinado, apelando, para a respectiva realização, aos vários
tipos de deveres estatais e consequentes diferentes reservas que os afectam.
Neste sentido, mesmo este tipo de critérios só será
admissível como fundamento de distinção quando consideramos os direitos
fundamentais em abstracto e naquela que é a sua dimensão tida como principal,
ou seja, dimensão de prestação fáctica nos direitos sociais e dimensão de
defesa nos direitos de liberdade. Ora, o alcance da distinção perde interesse
quando sabemos que, na vida prática, aquilo que nos surge e temos de resolver
como juristas nunca ou raramente é o direito como um todo, em abstracto, mas
antes uma dimensão ou faculdade particular, concreta, pontual, que pode
apresentar as mais diferentes características estruturais quer esteja integrada
num direito de liberdade ou num direito social.
De resto, confirmando a justeza desta reserva, o próprio
legislador constituinte a teve implicitamente em conta quando, no que se refere
a alguns direitos, mas já não, por razões de economia de enunciação,
relativamente a todos, se preocupou em distinguir as dimensões de liberdade e as dimensões sociais do mesmo direito considerado
como um todo, inserindo sistematicamente as primeiras no título II e as
segundas no título III. Como vimos, foi o que fez relativamente ao direito ao
ensino (liberdade de ensinar e aprender no art. 43º da Constituição, isto é,
direito de liberdade, e direito social ao
ensino no art. 74º e seguintes da Constituição, ou seja, na parte da
Constituição referida aos direitos sociais); ao direito à família e ao
casamento (art. 36º, enquanto direito de liberdade, e art. 67º, enquanto
direito social); ao direito ao trabalho, distinguindo a liberdade de escolha da
profissão e a segurança no emprego (art. 47º e art. 53º, direitos de liberdade)
do direito ao trabalho (art. 58º, direito social); relativamente ao direito à
cultura, distinguindo a liberdade de criação cultural (art. 42º, como direito
de liberdade) do direito social à
cultura (art. 73º, como direito social).
Tal como, da mesma forma, de nada adianta fundar uma
pretensa diferença entre os dois tipos de direitos na maior determinabilidade
de conteúdo dos direitos de liberdade quando considerados e comparados com os
direitos sociais no plano da sua positivação constitucional, quando sabemos
que, após conformação legal, uma tal diferença se esbate, desaparece ou até se
inverte. Isto é, após a respectiva conformação legal, um direito social, até
pela natureza das prestações estatais em causa, adquire muito maior
determinabilidade, em geral, que aquela que os direitos de liberdade recolhem
na sua conformação pelo legislador ordinário. Logo, também aí a diferença de
determinabilidade considerada enquanto fundamento de eventual maior protecção
constitucional a conferir aos direitos de liberdade terá o seu alcance
relativizado quando sabemos que, em geral, e após alguns anos de vigência da
Constituição, todos os direitos fundamentais, de liberdade ou sociais, foram já
objecto de conformação infraconstitucional que dissipa a justificação de
diferenciação de regimes de protecção construída naqueles moldes.
Com estas reservas, que nos casos concretos a decidir têm
uma influência decisiva, temos vindo a considerar[4] que, no que à sua dimensão
principal se refere, a diferença acolhida pela Constituição portuguesa entre
direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais,
para efeitos de diferenciação de regimes jurídicos de protecção constitucional
aplicáveis, assenta na combinação ou associação integrada de dois critérios: a
diferente determinabilidade de conteúdo constitucional dos direitos em causa e
a diferente natureza dos deveres estatais directamente envolvidos, com a
consequente diferença de natureza das reservas que os afectam. Mas, repita-se,
estes critérios só são admissíveis com a consciência das condicionantes
assinaladas, ou seja, de que nos referimos exclusivamente à dimensão principal
dos direitos e ao plano da sua consagração constitucional, o que, sendo
teoricamente possível, pode não ter qualquer significado quando nos
confrontamos, na vida prática, com uma dimensão, direito ou faculdade
específicas e já após a respectiva conformação legal.
Assim, uma vez que, na sua
dimensão principal —a dimensão de defesa da autonomia e liberdade individual—,
os direitos de liberdade são apenas afectados por uma reserva geral imanente de
ponderação com os valores, bens ou interesses igualmente dignos de protecção
jurídica e que, no caso concreto, apresentem maior peso, é possível à
respectiva norma constitucional de garantia criar, ela própria, uma área
juridicamente delimitada ou delimitável de livre acesso ou fruição de um bem ou
interesse de liberdade protegido pelo direito fundamental, independentemente de
esse acesso, assim abstractamente garantido, poder vir a ser comprimido ou
restringido no caso concreto em função daquela reserva.
Dessa determinabilidade
constitucional típica dos direitos de liberdade decorre, então, para os poderes
constituídos a obrigação de acatarem e garantirem a inviolabilidade e
possibilidades jurídicas de realização e concretização da capacidade de
autodeterminação individual assim, directa ou indirectamente, reconhecida e,
para os particulares, a possibilidade de reagirem jurisdicionalmente contra
eventuais restrições ou violações dessa margem de autodeterminação directamente
conferida pela norma constitucional.
Por sua vez, quanto aos direitos
sociais, eles estão afectados, na sua dimensão principal e em abstracto
—dimensão de prestação fáctica, por parte do Estado, das condições materiais de
acesso a bens sociais—, por uma reserva do financeiramente possível que, por
sua vez, reforça e potencia uma reserva do politicamente adequado ou oportuno
na correspondente realização positiva. Assim, a norma constitucional de garantia
de um direito social traduz-se essencialmente na imposição ao Estado de um
dever de prestar cuja realização, todavia, por estar essencialmente dependente
de pressupostos materiais, designadamente financeiros, não se encontra (ou pode
deixar de estar) na inteira disponibilidade da decisão do Estado. Por esse
facto, ou seja, pelo essencial condicionamento material e financeiro da
prestação estatal, a norma constitucional, em geral, não pode desde logo
garantir, na esfera jurídica do titular real ou potencial do direito
fundamental, uma quantidade juridicamente determinada ou determinável de acesso
ao bem protegido.
Nos direitos de liberdade, os
deveres que incumbem ao Estado são, em geral, independentes de quaisquer
disponibilidades financeiras ou materiais, pelo que, dependendo exclusivamente
da vontade de os poderes constituídos observarem os preceitos constitucionais,
a satisfação desses deveres é imediatamente exigível por força da consagração
constitucional do direito, o que pode não significar, note-se, exequibilidade
imediata da norma constitucional.
Diferentemente, o conteúdo dos
direitos sociais não é, em geral, constitucionalmente determinado ou
determinável. A norma constitucional de direito fundamental não cria, ela
própria, em termos definitivos, um âmbito delimitado de acesso reconhecido,
abrindo, todavia, essa possibilidade e impondo essa obrigação aos competentes
órgãos do Estado. Porém, num contexto de escassez de recursos materiais e de
consequente necessidade de fixação de prioridades de repartição segundo
critérios que, não sendo desvinculados das directivas constitucionais, são,
todavia, essencialmente determinados por uma irredutível —em democracia
política— margem de livre decisão do legislador democraticamente legitimado,
nem mesmo quando este determina os limites concretos de uma dada prestação se
pode aí reconhecer um espaço definitivamente protegido de autodeterminação
idêntico ao que caracteriza os direitos de liberdade.
É que o referido condicionamento material dos direitos
sociais faz deles —sempre— direitos que, na sua dimensão principal, são
direitos sob reserva do possível,
pelo que o correspectivo dever jusfundamental que impende sobre o Estado não é,
como nos direitos de liberdade, o de garantia da inviolabilidade e possibilidades
jurídicas de concretização de um espaço de autodeterminação individual, mas
antes o de, tanto quanto possível,
promover as condições óptimas de efectivação da prestação estadual em questão e
preservar os níveis de realização já atingidos.
Todavia, se esta é, em nosso entender, a forma
adequada de construção teórica da diferença estabelecida pela Constituição
portuguesa entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos,
sociais e culturais, ela só é bem entendida se se tiverem em conta as três
notas seguintes a que temos repetidamente aludido.
Em primeiro lugar, referindo-se, em abstracto, à dimensão
principal dos direitos fundamentais, esta construção tem de ser aplicada em
função do direito, faculdade ou garantia particular em causa na situação
jurídica concreta. A presença das características referidas de
determinabilidade de conteúdo e de natureza dos deveres estatais envolvidos
deve ter como referência o direito invocado no caso concreto, independentemente
de um tal direito ser teoricamente integrável num direito de liberdade ou num
direito social considerados como um todo.
Em segundo lugar, a questão da determinação ou
determinabilidade do conteúdo do direito deve ser apurada, se for o caso, em
função da aplicação conjugada da norma constitucional de garantia e da norma
ordinária que a conforma, uma vez que é da integração desses dois planos e
disposições normativos que resulta, em última análise, a norma de direito
fundamental aplicável ao caso.
Em terceiro lugar, ainda que associada e dependente da
questão da determinabilidade de conteúdo, decisivo para a resolução jurídica do
caso acaba por ser, não o direito fundamental como um todo, não o direito
fundamental ou a sua dimensão principal em abstracto, mas o tipo de dever
estatal imposto pela norma de direito fundamental aplicável ao caso concreto e
a natureza jurídica das especiais reservas que, nesse contexto prático, afectam
tal dever.
Portanto, independentemente da identificação abstracta e
como um todo de um direito como direito social ou como direito de liberdade, o
que conta para a identificação daquelas características diferenciadoras e para
a consequente aplicação do regime constitucional próprio dos direitos,
liberdades e garantias é a natureza estrutural do direito especial que surge na
situação jurídica controversa e não a natureza do direito em que ele se
integra.
Ou seja, se, por exemplo, num caso concreto controverso, vem
invocado, por parte de um particular, o direito à protecção policial da vida, a
pretensão que o Estado lhe garanta um determinado quantum de protecção da vida que ele considera ameaçada, o que
conta não é identificarmos o direito à vida, como um todo, como direito de
liberdade, mas sim a natureza do direito especialmente invocado no caso, logo,
o direito a que o Estado garanta um determinado nível de protecção policial à
vida de alguém. Logo, decisivo para sabermos se um tal direito usufrui ou não
do regime de protecção constitucional privilegiada atribuído aos direitos,
liberdades e garantias é conhecermos a natureza desse direito, a determinabilidade
constitucional do seu conteúdo, a natureza dos deveres que impendem sobre o
Estado, as reservas que afectam a exigibilidade judicial de cumprimento de tais
deveres.
Por último, dilucidada, nestes termos, a questão da
distinção constitucional entre direitos, liberdades e garantias e direitos
económicos, sociais e culturais para efeito do regime de protecção
constitucional aplicável, falta discutir as questões relacionadas com o
referido regime, dado que, como se verá, também nesse domínio a aparente
clareza dos enunciados constitucionais se vai revelar ilusória.
Podemos, com esforço, chegar à distinção entre direitos,
liberdades e garantias e direitos económicos, culturais e sociais, para efeitos
de aplicarmos aos primeiros e aos que lhes forem análogos, nos termos do art.
17º da Constituição, o referido regime de protecção constitucional
privilegiada, mas isso supõe, para o esforço fazer sentido, que haja, de facto
e de direito, um tal regime. Se, no fim do trajecto, concluíssemos que, afinal,
não há um regime de protecção especial e privilegiada dos direitos de
liberdade, mas apenas um regime de protecção, naturalmente privilegiada por
força do seu nível constitucional, aplicável a todos os direitos fundamentais,
então é a própria discussão sobre aquela distinção, que mobilizou durante
décadas doutrina e jurisprudência portuguesa, que se vê privada de relevância
dogmática, perplexidade esta que, por si só, constituiria um factor não
irrelevante para compreendermos parte da
resistência obstinada em reconhecer o que, em nosso entender, é óbvio.
Em qualquer dos casos, mesmo que viessemos a identificar um
regime especial de protecção privilegiada dos direitos, liberdades e garantias,
esse regime era insusceptível de se fundar, como vimos, numa distinção
essencialista associada a uma eventual superioridade hierárquica ou maior
relevância substancial dos direitos de liberdade relativamente aos direitos
sociais. No entanto, se essa é a conclusão a que se chega após porfiados
esforços de distinção e reflexão analíticas, aquilo que resulta primária,
intuitiva e insensivelmente da percepção de uma sistematização própria e da
atribuição de um regime de protecção privilegiada aos direitos de liberdade é a
ideia de uma superioridade, prioridade
ou primazia constitucionais dos direitos, liberdades e garantias
relativamente aos direitos económicos, sociais e culturais.
Ora, mesmo quando essas primeiras impressões, que, como
vimos, têm uma origem muito marcada no próprio momento constituinte, venham a
ser infirmadas a posteriori, elas
deixam inevitavelmente um rasto muito impressivo de inconvenientes dogmáticos
que se reflectem, pelo menos, em três domínios da maior relevância, no plano
constitucional e infraconstitucional.
Desde logo, e é afinal o problema que nos tem ocupado,
aquela ideia de supremacia, de natureza e de regime, dos direitos de liberdade
tende a reflectir-se na ideia feita
de que, a contrario, os direitos
sociais têm uma natureza e regime materiais de menor relevância e protecção.
Em segundo lugar, quando se trata de repartir, na
Constituição, as competências legislativas de Governo e Assembleia da
República, uma vez que, como é próprio de Estado democrático, se reserva ao
parlamento a legislação sobre as matérias mais importantes, então parece lógico,
aceitável e adequado que, não podendo sobrecarregar disfuncionalmente a
Assembleia da República com uma competência legislativa reservada sobre todos
os direitos fundamentais, lhe seja atribuída a reserva sobre os direitos de
liberdade, deixando a legislação sobre direitos sociais à competência
concorrencial dos dois órgãos. Porém, se a lógica de distinção entre direitos
de liberdade e direitos sociais não é, afinal, como vimos, uma diferença de
relevância, mas apenas estrutural, então uma tal repartição de competências
baseada na supremacia substancial é falha de racionalidade.
Por último, a ideia de supremacia material dos direitos de
liberdade reflecte-se também negativamente no plano infraconstitucional quando,
sob inspiração e directiva constitucional, é tomada como critério de distinção
no acesso à justiça. Foi o que sucedeu com as recentes alterações no
contencioso administrativo quando, na concretização do comando constitucional,
se criou uma acção especial de intimação para protecção dos direitos, liberdades
e garantias. Ora, esta opção, se faz todo o sentido a partir de uma ideia de
supremacia e de necessidade especial de protecção deste tipo de direitos,
suscita as maiores dificuldades quando se trata, não apenas de identificar os
direitos susceptíveis de ser accionados por esta via, como também o
eventual destino de desprotecção relativa que afecta, no caso, os direitos
sociais.
Consideraremos as primeiras duas questões no capítulo
seguinte, abordando por ora, sintetizadamente, o tema dessa eventual
desprotecção, seguindo, de perto, o que escrevemos recentemente sobre a questão[5].

2.1. A acção de intimação para a protecção de direitos, liberdades e
garantias e os direitos sociais
Em 2002, o Código de Processo dos Tribunais Administrativos
criou um novo meio processual, a "intimação para protecção de direitos,
liberdades e garantias ", utilizável quando seja indispensável, para
assegurar o exercício em tempo útil de um direito, liberdade ou garantia, uma
emissão célere de decisão judicial de mérito que imponha à Administração a
adopção de uma conduta positiva ou negativa.
A criação deste novo meio processual pelo CPTA, bem como,
especialmente, a recepção do conceito "direito, liberdade ou
garantia" tiveram uma clara matriz constitucional. O novo meio é, no
fundo, a concretização e desenvolvimento, por parte do legislador
administrativo, da imposição legiferante introduzida na revisão constitucional
de 1997 (art. 20º, 5, da Constituição), segundo a qual "para defesa dos
direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos
procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade […]".
De certa forma, e na ausência da possibilidade de defesa
directa dos seus direitos fundamentais junto do Tribunal Constitucional, a
Constituição instituía a necessidade de meios processuais céleres e
prioritários de defesa dos direitos fundamentais junto dos tribunais comuns. A
revisão constitucional tinha, portanto, uma clara intenção de suprir um défice
de protecção constitucional dos direitos fundamentais oriundo do sistema
originário, mas, ao mesmo tempo fazia-o de forma filtrada, cautelosa, compatibilizando aquela necessidade com
preocupações de eficácia e realismo: pelo menos, tais meios céleres e
prioritários deveriam ser garantidos, se não a todos os direitos fundamentais,
se não a todos os direitos, liberdades e garantias, pelo menos aos direitos,
liberdades e garantias pessoais.
Decorridos vários anos sobre o estabelecimento dessa
imposição legiferante, o legislador administrativo acolheu a orientação
constitucional e as respectivas preocupações, mas alargando a nova
"intimação para protecção dos direitos, liberdades e garantias" a
todo esse tipo de direitos, e não apenas aos direitos pessoais.
Ora, se as preocupações do legislador da revisão
constitucional de 1997 e do legislador administrativo, manifestadas na selecção
da categoria dos direitos, liberdades e garantias dentro do conjunto dos
direitos fundamentais, são compreensíveis e parecem justificadas, elas
assentam, no entanto, em dois pressupostos tidos como pacíficos, mas que, em
nosso entender, sendo deveras problemáticos, comprometem a racionalidade do
sentido do novo meio processual.
Pretendendo instituir um novo meio processual de defesa
efectiva dos direitos dos cidadãos, mas sentindo a necessidade, razoável, de
estabelecer um filtro de acesso,
recorreu-se, para tanto, ao conceito e à categoria dos "direitos,
liberdades e garantias", acolhida há mais de duas décadas pela
Constituição e trabalhada intensamente, desde então, por doutrina e
jurisprudência constitucionais. O legislador da revisão e o legislador
ordinário pressupunham, assim, em
primeiro lugar, que escolhiam um conceito operativo, racionalmente
utilizável e controlável; em segundo lugar, que garantiam, pelo menos, a
protecção dos direitos fundamentais mais importantes, prioritários, os
direitos, liberdades e garantias pessoais, como dizia a Constituição, ou, mais generosamente no caso do CPTA, os
direitos, liberdades e garantias.
A intimação para a protecção de direitos, liberdades e
garantias é, de facto, uma inovação de grande importância na nova justiça
administrativa: ela visa a salvaguarda e garantia do efeito útil de direitos da
maior relevância para os particulares —direitos fundamentais— sempre que o
recurso a acção administrativa especial ou comum é insuficiente ou inadequado
para garantir a protecção urgente de que o direito carece no caso concreto e
quando o procedimento cautelar é igualmente inapto para garantir esse efeito.
Porém, como nem um nem outro daqueles dois pressupostos (operatividade da
distinção e maior relevância material dos direitos, liberdades e garantias) tem
sustentação, a justiça administrativa
passa a debater-se, neste domínio, com grandes dificuldades que são
irresolúveis sem uma compreensão constitucionalmente adequada do conceito direitos, liberdades e garantias e dos
problemas que envolve nesse contexto.
Com a utilização, como filtro de acesso ao novo meio
processual, da exigência de pertença do direito invocado a uma categoria já longamente
trabalhada na dogmática constitucional portuguesa —a de direito, liberdade ou
garantia— o legislador (pres)supunha, naturalmente, que o filtro fosse
materialmente adequado aos fins em vista, ou seja, garantir a protecção
efectiva dos direitos fundamentais mais importantes e que a malha desse filtro
estivesse solidamente tecida e que, como tal, pudesse ser pacificamente
manuseada pelo juiz administrativo. Ora, se a necessidade de um filtro parece inquestionável, sob pena
de se paralisar a utilidade de um meio que só pode desempenhar a função para
que foi criado se, acima de tudo, for eficaz, já a adequação material, a
solidez e a possibilidade de aplicação daquele filtro concreto pelo juiz
administrativo estão muito longe das expectativas do legislador.
Em primeiro lugar, a questão da importância, da prioridade.
É certo que na parte da Constituição dos direitos,
liberdades e garantias, designadamente nos direitos, liberdades e garantias pessoais (artigos 24º a 47º da
Constituição, para este últimos), encontramos, apesar da diversidade e
heterogeneidade dos conteúdos, alguns dos mais importantes direitos
fundamentais. Porém, essa verificação está longe de permitir concluir que todos
os direitos, liberdades e garantias ou todos os direitos, liberdades e
garantias pessoais sejam mais
relevantes que outros direitos fundamentais, tenham maior proximidade à
dignidade da pessoa humana, sejam hierarquicamente superiores ou devam ter
prioridade de realização em Estado social e democrático de Direito.
A ideia de hierarquização dentro dos direitos fundamentais,
com uma pretensa natural superioridade dos direitos, liberdades e garantias, e
dentro destes, eventualmente dos pessoais,
é contrária à ideia de direitos fundamentais em Estado de Direito, não é
compatível com a vivência prática dos direitos fundamentais e é contraditada
todos os dias pela simples razão que a pretensa possibilidade de hierarquização
—mesmo admitindo que era possível e não é— pressupõe a consideração do direito
na sua globalidade e aquilo que acontece na vida de todos os dias são
conflitos, colisões e limitações, não do direito como um todo, mas de
modalidades e dimensões particulares, específicas, parcelares.
Porque é que, por facto de uns serem direitos, liberdades e
garantias e outros direitos sociais, deveria o direito à greve, então, preferir
sempre sobre o direito ao trabalho? O direito de propriedade sobre o direito à
habitação? O direito a fumar, baseado no direito ao desenvolvimento da
personalidade, sobre o direito à saúde?
Mesmo admitindo que era possível, e não é, deduzir uma
escala de preferências constitucionais para cada um destes direitos (direito ao
trabalho, à greve, à protecção da saúde, ao desenvolvimento das personalidade),
ela não serviria de nada porque na prática aquilo que colide ou está em causa
nunca é o direito como um todo, mas modalidades parcelares, concretas e
específicas do direito.
Mesmo admitindo que, como um todo, o direito ao
desenvolvimento da personalidade prevalece sobre o direito à saúde (e não é
preciso muito para concluir que essa dedução é, nesses termos, insustentável),
na prática porque é que uma dimensão mínima do direito ao desenvolvimento da
personalidade (o direito a fumar em espaços públicos fechados) deveria
prevalecer sobre o direito à saúde numa sua dimensão significativa (o direito a
não correr o risco de contrair cancro do pulmão por sujeição involuntária ao
fumo)?
Num sentido inverso, mesmo admitindo que o direito à saúde
ou o direito à vida a ele objectivamente associado, são direitos fundamentais
da maior ou máxima relevância material, não bastará essa evidência para
imediatamente concluir da prioridade de satisfação social de qualquer
reivindicação individual que venha sustentada na protecção conferida pelo
direito à vida ou pelo direito à saúde considerados como um todo.
Assim, quando alguém afectado por doença em estado terminal
reivindica do Estado o acesso a uma intervenção cirúrgica altamente dispendiosa
só realizável no estrangeiro ou o acesso a medicamentos igualmente dispendiosos
—ambos, intervenção e medicamentos, apenas tendo iniciado, e a título
experimental, a comercialização e, portanto, sem qualquer segurança quanto a
possíveis resultados—, o que está em causa, na realidade, aquilo que deve ser
ponderado, não é o direito à vida ou o direito à saúde, como um todo. Se fosse
assim, se em causa estivesse, de facto, o direito à vida como um todo, a
probabilidade de prevalência do interesse individual, configurado nesses
termos, sobre quaisquer razões do Estado, seria sempre enorme.
Porém, na realidade, o que está em causa, o que deve ser
ponderado e considerado é, antes, a probabilidade, remota, não provada nem
testada, de eventual prolongamento da vida, eventualmente por tempo mínimo, a
custos eventualmente incomportáveis para o Estado ou só comportáveis com desvio
de fundos destinados à melhoria real e efectiva das condições de acesso de
todos à assistência médica. E, se assim for, o resultado da ponderação já
poderá ser muito diverso.
Como é evidente, aquilo que é determinante são as
circunstâncias concretas que envolvem o caso (e o peso que nelas assumem as
dimensões parcelares dos direitos em causa) e não qualquer preferência
abstracta dos direitos considerados como um todo; mudando as circunstâncias,
mudam as preferências. A hierarquização abstracta classificatória ou é
impossível de ser fixada ou não serve para nada.
Para além desta aproximação, foi também comum na doutrina
procurar a justificação da consagração constitucional de um regime privilegiado
de protecção aos direitos, liberdades e garantias, não em razões de hierarquia,
mas, indirectamente, numa maior pretensa vinculação comparativa deste tipo de
direitos a princípios nucleares do Estado de Direito, como a dignidade da
pessoa humana, a autonomia ou autodeterminação pessoal, o radical subjectivo ou
a dimensão subjectiva. Mas também esta tentativa falha porque não há
fundamentos objectivos que a sustentem.
Porque é que o direito de antena ou de réplica na
comunicação social (indiscutivelmente direitos, liberdades e garantias pessoais, segundo a enumeração
constitucional) estão mais vinculados à dignidade, à autonomia pessoal ou ao
radical subjectivo que o direito a uma habitação condigna? Por que o direito de
propriedade ou de iniciativa económica privada (direitos de liberdade ou, no
mínimo, análogos a direitos, liberdades e garantias) são mais próximos da
dignidade da pessoa humana que o direito a um mínimo de existência condigna ou
por que razão seria o direito a fazer greve mais pessoal que o direito ao
trabalho?
Mas, mesmo que, prescindindo da questão da importância, da
prioridade —que falhando implica, no entanto, também a falência da adequação
constitucional do filtro escolhido—,
procurássemos simplesmente utilizar a categoria direitos, liberdades e garantias como fórmula neutra de selecção
pragmática das possibilidades de acesso individual ao novo meio processual,
também aí a capacidade de filtragem
não existe. É que, sem grande dificuldade, é sempre possível, no mesmo caso
concreto, em vez de invocar a lesão do direito social de facto afectado, cobrir o interesse individual em questão
através da invocação subsidiária da afectação de um direito, liberdade ou
garantia, em última análise, o direito ao desenvolvimento da personalidade do
art. 26º da Constituição.
De resto, essa é a estratégia que vem sendo ensaiada nos
tribunais administrativos. É que se para utilizar a intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias se exige a invocação de um direito, liberdade
ou garantia expressamente enunciado no título II da parte I da Constituição, ou
um direito análogo certificado de acordo com os critérios desenvolvidos pela
doutrina tradicional, não haverá, então, a mínima dificuldade em fazê-lo.
De facto, é sempre possível "traduzir" um direito
social por um direito, liberdade ou garantia[6] e
se, por hipótese, não houver um qualquer outro disponível, há sempre a
possibilidade de invocar, sem risco de objecção, o direito ao desenvolvimento
da personalidade. Qualquer lesão ou ameaça de lesão de um direito social (direito
à saúde, à habitação, ao ensino, à cultura, ao trabalho, ao mínimo de
subsistência ou qualquer outro) é sempre também, inevitavelmente, lesão ou
ameaça de lesão do direito ao desenvolvimento da personalidade e este é
indiscutivelmente um direito, liberdade ou garantia, quaisquer que sejam os
critérios desenvolvidos pela doutrina tradicional a que se recorra, e é até um
direito, liberdade ou garantia pessoal,
o que satisfaria mesmo quem, embora sem
apoio, releve essa exigência como pressuposto de recurso ao meio processual em
causa.
Por último, também o pressuposto da operatividade de
utilização da categoria direitos,
liberdades e garantias na justiça administrativa é de sustentação, no
mínimo, discutível.
Como se viu, arredadas, por constitucionalmente inadequadas,
as tentativas substancialistas ou essencialistas de distinção entre
direitos de liberdade e direitos sociais, o único critério susceptível de
utilização, e que, a prazo, acaba por recolher o acordo residual de doutrina e
jurisprudência, é o critério da determinabilidade de conteúdo da norma de
direito fundamental em causa e da natureza dos deveres estatais envolvidos. É
que não são pretensos escalões de relevância material que diferenciam os tipos
de direitos fundamentais. O que neles é distinto é uma diferente
justiciabilidade em consonância directa com uma determinabilidade de conteúdo
constitucional correspondentemente diferenciada.
Ora, se o único critério operativo de distinção entre
direitos fundamentais no plano constitucional é o da determinabilidade de
conteúdo, na maior parte dos casos, quando a justiça administrativa é chamada a
intervir, esse critério já não é utilizável, uma vez que as diferenças de
determinabilidade de conteúdo dentro dos direitos fundamentais, em regra, já
desapareceram ou foram superadas através da intervenção conformadora e
homogeneizadora por parte do legislador ordinário.
Em princípio, na justiça administrativa, e quando se trate
de invocar a garantia de um direito social, lidamos com direitos que já
passaram pela conformação do legislador ordinário, portanto, com direitos que,
em geral, apresentam já, e relativamente aos clássicos direitos de liberdade,
um grau de determinação até bem superior a estes, uma vez que, em geral, se
traduzem na previsão concreta, quantificada, precisa, de uma determinada
prestação fáctica.
A partir do momento em que nos passamos a mover no plano
infraconstitucional, ou seja, a partir do momento em que o legislador já
conformou concretamente o conteúdo dos direitos fundamentais de conteúdo
constitucional indeterminado, especificando concreta e precisamente as
garantias dos particulares e as obrigações que incumbem aos poderes públicos,
aquelas primeiras distinções operantes no plano constitucional perdem agora
sentido. Ora, se bem que não exclusivamente, é sobretudo este plano
infraconstitucional que interessa à justiça administrativa que, em geral, lida
com direitos fundamentais já legalmente conformados e concretizados e em que a
questão da determinabilidade de conteúdo —que era o problema-chave da distinção
constitucional dos direitos, liberdades e garantias dentro do sistema dos
direitos fundamentais— já estará, em princípio, superada.
Ou seja, desde que o conteúdo do direito fundamental esteja
já determinado, a distinção entre direitos, liberdades e garantias e outros
direitos perde sentido ou, pelo menos, deixa de se centrar na questão da
determinação ou determinabilidade de conteúdo —já resolvida pelo legislador—
para passar a centrar-se na questão da fundamentalidade do próprio direito ou
faculdade legalmente conformados. Se no que se refere, por exemplo, aos
direitos sociais, a norma jusfundamental é agora, após a concretização do
legislador, tão ou mais determinada que a norma jurídica que garante os
direitos de liberdade, não há qualquer razão para, pressuposta uma idêntica
fundamentalidade, distinguir entre eles, seja do ponto de vista material seja
do processual.
O que importa, portanto, também para efeitos de justiça
administrativa e possibilidade de acesso a este novo meio processual, não é uma
distinção abstracta entre direitos, liberdades e garantias e direitos
económicos, sociais e culturais, mas a questão de saber se o direito em causa é
um direito fundamental da maior relevância material, se está suficientemente determinado em termos de
direito subjectivo público e, como tal, é susceptível de ser judicialmente
invocável com respeito integral do princípio da separação de poderes e dos
limites funcionais da justiça administrativa.
Em nosso entender, esses critérios (fundamentalidade do
direito, determinabilidade do seu conteúdo e, consequentemente, possibilidade
de recurso à justiça administrativa com plena observância da separação de
poderes) são os únicos que, sob pena de desvirtuamento não racional de um meio
processual da maior importância, podem e devem ser utilizados para delimitar o
conjunto de direitos susceptíveis de ser defendidos através da intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias.
3. O regime constitucional dos direitos sociais e a pretensa distinção
entre um regime específico de protecção dos direitos, liberdades e garantias e
um regime próprio dos direitos sociais. Crítica
O dito regime próprio de protecção constitucional
privilegiada dos direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa é
normalmente caracterizado como estando distribuído por três planos: um regime
material, um regime orgânico e um regime de revisão constitucional.
O regime de revisão constitucional reside no facto de os
direitos, liberdades e garantias terem sido erigidos, no seu todo, como limites
materiais de revisão constitucional (art. 288º, alínea d)), enquanto que, dos
direitos sociais, só os direitos dos trabalhadores parecem gozar de tal regime
(art. 288º, alínea e)).
O regime orgânico tem a ver com a reserva de competência
legislativa da Assembleia da República que parece incluir os direitos,
liberdades e garantias no seu todo (art. 165º, alínea b)) e só acolhe os
aspectos nucleares de algumas matérias conectadas aos direitos sociais (por
exemplo, nos artigos 164º e 165º, as bases do sistema de ensino, do serviço
nacional de saúde e do sistema de segurança social).
Por último, mas constituindo o essencial do referido regime
especial, considerando o plano material ou o regime material, a protecção
privilegiada dos direitos, liberdades e garantias estaria consagrada no art.
18º (aplicabilidade directa, vinculação das entidades públicas e privadas,
proibição de restrições não expressamente autorizadas, princípio da proibição
do excesso, proibição da retroactividade, garantia da generalidade e abstracção
das leis restritivas, garantia do conteúdo essencial), no art. 19º (proibição
de suspensão, a não ser, excepcional e condicionadamente, em estado de sítio e
estado de emergência), no art. 20º, nº 5 (acesso prioritário e célere ao
direito), no art. 21º (direito de resistência), no art. 22º (responsabilidade
das entidades públicas) e no art. 272º, nº3 (limites da actividade de polícia
de prevenção dos crimes).
A simples enunciação dos vários artigos em que o legislador
constituinte procurou consagrar tal regime deixa claro que houve uma nítida e
indiscutível intenção de proteger os direitos de liberdade de forma especial e
reforçada relativamente à protecção conferida aos direitos sociais. Há, de
facto, um conjunto de normas da Constituição onde se confere uma protecção
especial aos direitos, liberdades ou garantias e, aparentemente, só a eles, já
que não se faz ali qualquer referência aos direitos sociais ou a um regime
especial para estes direitos. Mas terá essa intenção alcançado tradução prática
efectiva?
Basicamente, a questão é a seguinte. Os direitos sociais,
pelo simples facto de serem direitos fundamentais e serem assim qualificados
pela Constituição, gozam de uma protecção jurídica qualificada. Uma vez obtida
consagração expressa em normas constitucionais, daí decorre, necessariamente,
uma vinculação e subordinação jurídica dos poderes constituídos aos respectivos
comandos, sob pena, em Estado com Constituição rígida e justiça constitucional,
de inconstitucionalidade.
Mais ainda, não apenas por se moverem no âmbito de direitos
fundamentais, mas igualmente por estarem sujeitas aos princípios
constitucionais de Estado de Direito, especialmente nas relações que
estabelecem com os cidadãos, todas as entidades públicas estão juridicamente
vinculadas, também sob pena de inconstitucionalidade, à observância dos
chamados princípios constitucionais estruturantes sempre que afectam
negativamente o acesso individual aos bens sociais protegido por normas de
direitos sociais.
Ora, como dizíamos noutro local[7], a intenção constituinte
de tratar privilegiadamente os direitos de liberdade relativamente aos direitos
sociais é uma impossibilidade lógica porque a Constituição não pode dar aos direitos, liberdades e garantias
mais protecção do que a que lhes é devida pela sua natureza constitucional, tal
como, e em contrapartida, não pode dar aos
direitos sociais menos que essa mesma protecção constitucional. Ou seja, a
protecção devida a direitos de liberdade e a direitos sociais tem de ser, no
fundo, exactamente a mesma, isto é, a protecção devida pelo facto de
constituirem direitos fundamentais constitucionalmente consagrados e, logo,
impostos normativamente à observância de todos os poderes constituídos.
O erro original
foi, portanto, o de pretender fazer decorrer consequências jurídicas precisas e
mecânicas de um modelo necessariamente artificial de sistematização dos
direitos fundamentais, quando, afinal, essa diferenciação de consequências e
regime jurídicos é insusceptível de ser construtivamente introduzida e
trabalhada. E isso é assim porque, como em Estado de Direito qualquer norma
constitucional se impõe, sempre, aos poderes constituídos, no mundo dos
direitos fundamentais as diferenças de vinculação e de protecção judicial
decorrem, não de quaisquer opções artificiais de classificação e
sistematização, mas exclusivamente das consequências imperativas que o
princípio da separação de poderes (relação entre as margens de decisão de
legislador, administração e juiz) projecta sobre a justiciabilidade das
pretensões apoiadas nessa norma constitucional.
No fundo, todo o problema do pretenso regime de protecção
reforçada dos direitos, liberdades e garantias remete para a resposta a essa
questão: esse regime acrescenta alguma coisa à protecção que já deriva,
automaticamente, da natureza constitucional das normas de direitos fundamentais
e da necessária observância dos princípios constitucionais por parte do Estado?
Em nosso entender, não.
Aquilo que fazem os artigos da Constituição que enunciam o
referido regime material de protecção especial dos direitos, liberdades e
garantias, designadamente o art. 18º onde se contém o coração desse regime, não é mais que condensar expressamente os
princípios constitucionais estruturantes de Estado de Direito em fórmulas
lapidares aplicadas às leis restritivas —o princípio da proibição do excesso
(proibição de leis restritivas desnecessárias ou desproporcionais e garantia do
conteúdo essencial), o princípio da igualdade (proibição de leis restritivas
individuais e concretas), o princípio da protecção da confiança (proibição da
retroactividade das leis restritivas) ou o princípio da dignidade da pessoa
humana (garantia do conteúdo essencial).
Por isso mesmo, por se tratar de regime constitucional geral
aplicável a todos os direitos fundamentais, como temos vindo a sustentar[8], praticamente todo o
pretenso regime específico dos direitos, liberdades e garantias é extensível
aos direitos sociais e, de resto, como se verá, a própria jurisprudência
constitucional, se bem que não o reconhecendo —nem tem que o fazer—, tem vindo,
na prática, a acolher progressivamente este entendimento em toda a sua extensão[9].
Curiosamente, verifica-se aqui uma invulgar, mas
assinalável, dessintonia do Tribunal Constitucional relativamente à doutrina
tradicional. Enquanto que esta persiste, como que por inércia, a manter o
recurso aos velhos dogmas de
distinção entre os dois tipos de direitos e às construções pretensamente
específicas dos direitos sociais, o Tribunal Constitucional, não tão preso a essa memória ou nela pessoalmente envolvido, e a braços com a
necessidade de resolução concreta dos problemas jusfundamentais suscitados no
âmbito dos direitos sociais, está muito mais aberto à novidade que, afinal, não é mais que recorrer à mais antiga,
estabilizada e provada das construções —a simples aplicação aos direitos
sociais, como direitos fundamentais que são, da teoria das restrições aos
direitos fundamentais.
Tal entendimento de indistinção entre os dois tipos de
direitos parece-nos, com efeito, de uma evidência meridiana, sobretudo no que
se refere àquelas regras e princípios normalmente tidas como constituindo o
núcleo da referida protecção privilegiada dos direitos, liberdades e garantias,
designadamente o artigo 18º e também o artigo 19º da Constituição, sobre
restrição e suspensão de direitos.
Segundo a Constituição (art. 19º), os órgãos de soberania
não podem suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias salvo em
caso de estado de sítio e de emergência. Daqui se infere, naquela visão da
existência de um regime especial destes direitos, que tal é um exclusivo ou uma
manifestação da protecção constitucional reforçada ou privilegiada dos
direitos, liberdades e garantias relativamente aos direitos sociais. Mas, podem
os órgãos de soberania suspender o exercício dos direitos sociais?
Evidentemente, não. Se, por absurdo, o fizessem, tal decisão, fosse acto
legislativo, político, administrativo ou judicial, seria uma flagrante inconstitucionalidade.
Logo, não há, aí, qualquer diferença de protecção, mas absoluta identidade de
regimes.
Segundo a Constituição (art. 18º), as leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias não podem afectar o seu conteúdo essencial,
não podem ser retroactivas, não podem ser excessivas ou desproporcionais, têm
de ser gerais e abstractas. Mas, não podem restar dúvidas que todas estas
regras e princípios se aplicam indiferentemente aos direitos sociais, pelo
simples facto de a protecção destes direitos estar prevista em normas
constitucionais e de existência de um Estado constitucional de Direito de onde
decorrem limites jurídicos vinculativos à actuação dos poderes públicos.
Assim, uma lei não pode afectar o conteúdo essencial[10] de um direito social
exactamente da mesma forma e com o mesmo alcance com que não pode afectar o
conteúdo essencial de um direito de liberdade; se o fizer, há, pura, simples e
indiferenciadamente, violação de um ou outro direito. Se uma lei afectar
retroactivamente a posição jurídica de um particular protegida por um direito
social, tal lei é inconstitucional, desde logo por violação do princípio da
protecção da confiança legítima, exactamente como ocorre com um direito de
liberdade[11].
Uma lei que afecte desproporcional, desnecessária ou excessivamente um direito
social é inconstitucional, por violação das normas constitucionais e dos
princípios estruturantes de Estado de Direito, tal como será inconstitucional a
lei individual e concreta que afecte desvantajosamente um direito social, por
violação do princípio da igualdade, em uma e outra eventualidade, exactamente
nos mesmos termos que se verificam com análogas afectações negativas de um
direito de liberdade.
Donde se conclui, em nosso entender sem margem aceitável de
dúvida, que todo o núcleo do regime material pretensamente específico dos
direitos, liberdades e garantias se aplica, em toda a sua extensão e com o
mesmo alcance, aos direitos sociais.
Da mesma forma se (des)aplica indiferentemente a direitos de
liberdade e direitos sociais a outra regra que, durante muito tempo, foi
considerada como elemento vital da protecção privilegiada dos direitos,
liberdades e garantias, ou seja, a regra do art. 18º, nº 2, primeira parte,
segundo a qual a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos
casos expressamente previstos na Constituição. Aparentemente, esta protecção
absoluta contra restrições não expressamente autorizadas pela Constituição só
protegeria os direitos de liberdade. Porém, como procurámos demonstrar noutro
local[12], esta regra não pode, por
natureza, ter o sentido que resulta do seu enunciado literal, não devendo o seu
alcance jurídico ir além de advertência simbólica e manifestação da intenção
constituinte em tratar bem os
direitos fundamentais, ou seja, de assinalar uma especial vinculação e
condicionamento dos poderes públicos aquando da afectação negativa dos direitos
fundamentais, o que, em Estado de Direito, se aplica indiferenciadamente a
direitos de liberdade e direitos sociais[13].
Também a vinculação das entidades públicas e privadas aos
direitos, liberdades e garantias, imposta no art. 18º, nº 1, segunda parte, não
configura, em nosso entender, qualquer especificidade deste tipo de direitos
relativamente aos direitos sociais. Isso é sobretudo evidente no caso das
entidades públicas, porque estando elas obrigadas à observância das normas
constitucionais, estão também, naturalmente, vinculadas à observância das que
acolhem os direitos sociais.
Da parte das entidades privadas, há, tal como relativamente
aos direitos de liberdade, uma obrigação geral de respeito para com os direitos
sociais dos outros particulares. Para além disso, e de igual forma como sucede
com os direitos, liberdades e garantias, a vinculação da entidades privadas
faz-se, ainda, de forma mediata ou indirecta —através das cláusulas e
princípios gerais de Direito civil, nos casos em que o legislador ordinário não
regulou directamente a forma e moldes da vinculação— ou através dos deveres
estatais de protecção que obrigam genericamente todos os poderes do Estado à
defesa dos direitos fundamentais, de todos eles, face a ameaças ou agressões
provindas de outros particulares. Como se sabe, essas são as teses mais
adoptadas sobre a vinculação das entidades privadas pelos direitos
fundamentais, isto é, as chamadas tese da relevância mediata ou a tese dos deveres
de protecção.
Já suscitaria mais dificuldades a vinculação das entidades
privadas aos direitos sociais perspectivada enquanto vinculação directa e
imediata, enquanto possibilidade, directamente decorrente da Constituição, de
os titulares dos direitos sociais invocarem e reivindicarem directamente dos
outros particulares a realização dos direitos sociais. No entanto, também
relativamente aos direitos de liberdade essa concepção suscita reservas, em
nosso entender[14],
inultrapassáveis.
Ainda dentro do regime material, também a norma
constitucional sobre responsabilidade das entidades públicas por acções ou
omissões "de que resulte violação dos direitos, liberdade e garantias ou
prejuízo para outrem" (art. 22º), não pode ser considerada de aplicação
exclusiva aos direitos de liberdade, seja por razões de Estado de Direito, que
já vinculariam o Estado a responsabilizar-se por violações dos direitos
fundamentais mesmo sem esta norma específica, seja porque a menção a
"prejuízo para outrem" inclui, naturalmente, prejuízos verificados no
âmbito de protecção dos direitos sociais. De resto, a própria lei ordinária
sobre responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais entidades
públicas, que concretiza a norma constitucional, deixou, e bem, de fazer a
distinção, abandonando a especificação "direitos, liberdades e
garantias" em favor da referência geral a "direitos
fundamentais".
Também a norma de protecção dos direitos, liberdades e
garantias através do direito de resistência contra agressões ou ordens que os
ofendam (art. 21º), se bem que clara e intencionalmente redigida para aplicação
exclusiva a este tipo de direitos, pode, sem esforço, ser indiferentemente
aplicada à protecção dos direitos sociais em idênticas situações. De facto,
considerando que lidamos, na melhor interpretação da previsão desta norma, com
situações excepcionais e extremas de ofensa grave e carente de protecção, não é
difícil, consoante o caso, reconverter
formalmente a ofensa ou agressão a direito social (por exemplo, nos casos do
direito a um mínimo vital, do direito à habitação, à saúde, ao ensino ou ao
trabalho) como ofensa à dignidade da pessoa humana ou a direitos de liberdade
como os direitos à vida ou à integridade física, à segurança no emprego, à
liberdade de aprender e ensinar, à inviolabilidade de domicílio ou, em última
análise, o abrangente direito ao desenvolvimento da personalidade.
A norma do art. 20º, nº 5, que determina para o legislador a
obrigação de criar meios prioritários e céleres para assegurar a tutela
efectiva e em tempo útil dos direitos, liberdades e garantias pessoais, só se
realiza através da intervenção do legislador ordinário. Ora, nem este fica
obrigado a reservar os meios prioritários e céleres só aos direitos, liberdades
e garantias pessoais, nem essa, como vimos[15], seria a opção
constitucionalmente mais adequada.
Por último, também os
limites à actividade de polícia de prevenção de crimes (art. 272º, nº 3), se
bem que, por natureza, especialmente relevantes no domínio da protecção de
direitos, liberdades e garantias, não deixam, por definição, de incluir o
necessário respeito dos direitos sociais enquanto normas constitucionais que
toda a actividade de polícia tem de observar.
Resta assim, no domínio do regime material de protecção
especial dos direitos, liberdades e garantias, a norma sobre aplicabilidade
directa (art. 18º, nº 1, primeira parte), segundo a qual "os preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente
aplicáveis".
Aqui há, de facto, em nosso entender, uma diferença sensível
entre direitos de liberdade e direitos sociais. No entanto, se bem percebida,
essa diferença não se traduz numa protecção especial que o legislador
constituinte pudesse conferir ou deixar de conferir, mas é, antes, algo que diz
respeito à descrição da própria natureza e identidade deste tipo de direitos.
Em primeiro lugar, a aplicabilidade directa dos preceitos
constitucionais de que aqui falamos é, estritamente, a que se traduz na
possibilidade de invocação judicial directa dos preceitos constitucionais no
interesse do titular do direito. Só nesta dimensão restrita é que faz sentido
colocar a hipótese de uma diferença, já que, se considerarmos o conceito na
perspectiva lata de simples capacidade de produção directa de efeitos
jurídicos, aí já todos os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos
sociais seriam, tal qual os respeitantes aos direitos de liberdade, de
aplicabilidade directa.
Com efeito, como a generalidade da doutrina reconhece[16], todas as normas
constitucionais, incluindo as puramente programáticas, são juridicamente
vinculativas, produzem alguns efeitos jurídicos, mesmo sem prévia mediação
legislativa ordinária, como sejam o facto de poderem constituir fundamento de
inconstitucionalidade de actos ou normas de sentido contrário, de
inconstitucionalização de normas constitucionais ou ordinárias anteriores, de
fonte de interpretação e integração de outras normas e complexos normativos, de
elevação objectiva de certos bens e interesses à categoria de bens jurídicos de
nível constitucional, de vinculação programática da actuação dos poderes
públicos, de eventual inconstitucionalidade por omissão em caso de não
cumprimento de obrigações concretas e precisas de legislar.
Falamos, portanto, pois só aí pode haver diferenças de
aplicabilidade no domínio dos direitos fundamentais, daquela aplicabilidade
directa em sentido restrito, enquanto possibilidade de invocação judicial de um
direito, no interesse do seu titular e directamente a partir da norma
constitucional. Ora, quanto a esse sentido de aplicabilidade directa, a norma
constitucional do art. 18º, nº 1, primeira parte, é normalmente entendida como
constituindo um elemento, entre outros, do regime de protecção especial dos
direitos, liberdades e garantias criado pelo legislador constituinte, quando,
no entendimento que vimos sustentando[17], o legislador
constituinte não tem, neste domínio, margem
de criação. Ou seja, a aplicabilidade directa de uma qualquer norma
constitucional, que em Estado de Direito com Constituição normativa é sempre
juridicamente vinculativa, decorre da natureza dessa norma, da
determinabilidade do seu conteúdo e da sua particular densidade normativa e não
de qualquer opção que o legislador constituinte pudesse livremente tomar[18].
De que adiantaria, por exemplo, o legislador constituinte decretar que as normas "todos têm
direito ao trabalho" ou "todos têm direito a uma habitação
condigna" são de aplicabilidade directa? No dia seguinte os particulares
podem apresentar-se em tribunal exigindo um posto de trabalho ou uma habitação
condigna? E se o legislador constituinte não tivesse decretado que a norma constitucional "em caso algum haverá
pena de morte" é de aplicabilidade directa? No dia seguinte os tribunais
estavam impedidos de recusar a aplicação, por inconstitucionalidade e
recorrendo directamente à citada norma constitucional, de uma qualquer norma ou
acto de condenação de alguém à morte?
A resposta é, obviamente, não, num e no outro caso. Independentemente do que quer que o
legislador constituinte tivesse dito a propósito, as primeiras normas
constitucionais (direito ao trabalho ou à habitação) não têm uma natureza e uma
densidade normativa que permitam a sua aplicabilidade directa, pelo menos na
sua dimensão principal de direito a prestações estatais fácticas; a segunda
(proibição da pena de morte) tem uma natureza que não só permite, como impõe,
em Estado constitucional, a sua aplicabilidade directa.
Isto não significa, em todo o caso, que a referida norma
constitucional do art. 18º, nº 1, primeira parte, seja despicienda ou
constitucionalmente irrelevante. Por um lado, quando diz que os preceitos
referentes aos direitos, liberdades e garantias são de aplicabilidade directa,
tal permite-nos compreender e identificar a diferença de natureza das normas de
garantia de direitos de liberdade: pelo menos em princípio, e na sua dimensão
principal, elas têm uma natureza e uma determinabilidade de conteúdo que
permitem a sua aplicabilidade directa. Mais, tratando-se, então, de normas
constitucionais com uma tal natureza, a aplicabilidade directa é, não apenas
uma possibilidade, mas uma exigência. E, com este último sentido, aquela norma
constitucional que a decretara, pode
revelar-se da maior importância.
Ou seja, uma tal norma deixa claro que a falta de mediação
ou concretização legislativas não obstam à efectividade dos direitos
constitucionalmente consagrados susceptíveis de aplicabilidade directa e que,
designadamente, o poder judicial está obrigado a garanti-los e a fazê-lo, pelo
menos no grau constitucionalmente adequado possível, mesmo quando a norma
constitucional remete para o legislador ordinário a tarefa de conferir plena
exequibilidade à norma constitucional. Ora, esta consequência é da maior
importância, sobretudo nos primeiros tempos de vigência de uma nova ordem
constitucional ou quando o legislador ordinário prolonga no tempo o
incumprimento do comando constitucional de concretização.
Portanto, não se trata de retirar relevância à norma que
dispõe sobre a aplicabilidade directa dos direitos, liberdades e garantias, mas
apenas de concluir que ela não é algo que a Constituição ou o legislador
constituinte tenham conferido a esses direitos para lhes garantir uma protecção
reforçada, mas sim uma característica intrinsecamente colada à diferente natureza dos direitos de liberdade e dos
direitos sociais quando tomados nas respectivas dimensões principais. A
aplicabilidade directa não é um elemento, como qualquer outro, do regime dos
direitos de liberdade. O legislador constituinte pode criar uma diferença entre
direitos de liberdade e direitos sociais, por exemplo, quando diz que o Governo
pode legislar sobre direitos sociais, mas já não pode legislar, pelo menos sem
autorização, sobre direitos de liberdade. Aí o legislador constituinte pode
definir um regime. Ao invés, sobre a
aplicabilidade directa, a característica já lá
está, o legislador constituinte não a pode criar,
não a pode definir constitutivamente como elemento do pretenso regime especial
de protecção destes direitos.
Uma tal diferença entre os dois tipos de direitos existe,
quando se considera a sua dimensão principal, e tem essencialmente a ver com a
diferente determinabilidade de conteúdo de uns e outros direitos no plano
constitucional. Na medida em que, nessa dimensão, os direitos sociais se
traduzem em exigência de prestações fácticas, materiais, com custos
financeiros, eles são direitos sob reserva do financeiramente possível,
dependentes das disponibilidades financeiras do Estado e das consequentes
opções políticas de distribuição orçamental de recursos.
Assim, não é possível nem conveniente que, na maior parte
dos casos o legislador constituinte os possa determinar em grau bastante para
permitir a sua aplicabilidade directa. Em geral, e ao contrário do que ocorre
nos direitos de liberdade, da norma constitucional de direito social não
resulta o quantum garantido de acesso
individual ao bem protegido susceptível de realização judicial nem é possível
ao juiz determiná-lo com recurso aos critérios de interpretação jurídica da
norma constitucional. Por isso, eles
não são, em princípio, directamente aplicáveis a partir exclusivamente da norma
constitucional de garantia.
Porém, se a diferença existe e é sensível e relevante no
domínio da dimensão principal dos direitos sociais, já quando se consideram os
direitos como um todo encontramos normas de aplicabilidade directa nuns e
outros direitos fundamentais, em função, precisamente, da determinabilidade de
conteúdo normativo e não numa distinção classificatória abstracta. Assim, uma
norma de direito social que prescreva uma actuação certa e determinada dos
poderes públicos, eventualmente com o carácter de regra, é mais determinada e mais
directamente aplicável que uma norma de direito de liberdade com carácter principial, eventualmente sujeita a uma
reserva do politicamente adequado ou até uma reserva do financeiramente
possível, como as que encontramos nos domínios dos deveres de protecção e
promoção da liberdade individual.
E, mesmo numa norma típica de direito social, como as que
referimos do direito à habitação ou do direito ao trabalho, encontramos
dimensões directamente aplicáveis independentemente de concretização
legislativa ordinária. Por exemplo, o dever estatal de respeito do direito à
habitação, de não privação desse direito, é directamente aplicável. Da mesma
forma, mesmo no âmbito dos deveres de prestação positiva, se pode dizer que a
dimensão de prestação estatal positiva exigida pelo princípio da dignidade da
pessoa humana ou sem cuja realização haveria violação do princípio da proibição
do défice são dimensões de aplicabilidade directamente decorrente das normas
constitucionais de direitos sociais.
Resta a análise dos referidos regimes especiais de revisão
constitucional e orgânico, na tentativa de encontrar algum fundamento —ainda
que já meramente residual, uma vez que no plano material as pretensas
diferenças de regime se dissiparam sucessivamente— para a ideia comum de que os
direitos, liberdades e garantias beneficiam, entre nós, de uma protecção
especialmente reforçada e privilegiada relativamente aos direitos sociais.
Quanto ao regime de revisão constitucional, se na primeira
fase de vigência da Constituição o problema atraía grande atenção da doutrina,
a sua importância encontra-se hoje muito relativizada, à medida que se
interiorizou a ideia de um relevo praticamente simbólico dos direitos,
liberdades e garantias como limites materiais de revisão constitucional.
As revisões constitucionais, especialmente as de 1997 e 2004,
confirmaram, na medida em que actuaram claras restrições a direitos, liberdades
e garantias expressamente consagrados, que o legislador da revisão não pode ter
menos poderes neste domínio que o legislador ordinário. Logo, se este pode
restringir os direitos de liberdade para prosseguir a realização de outros bens
igualmente dignos de protecção jurídica, o legislador da revisão deverá ter
idênticos poderes. Isso significa, no limite, que a protecção conferida pela
alínea d) do art. 288º da Constituição (limites materiais de revisão) protege
sobretudo contra alterações radicais, globais, violadoras dos princípios
estruturantes do Estado de Direito e, essas, tanto afectam direitos de
liberdade quanto direitos sociais.
Mais efectiva e significativa, mas, por isso também, mais
problemática, é a protecção orgânica do art. 165º, nº 1, alínea b), quando
reserva à Assembleia da República a competência exclusiva, salvo autorização ao
Governo, para legislar sobre "direitos, liberdades e garantias". Esta
é, de facto, a verdadeira ou única
diferença significativa de regime de protecção dos direitos de liberdade
relativamente aos direitos sociais (partindo do princípio que não se concebe, e
foi a posição aqui sustentada, a aplicabilidade
directa enquanto verdadeiro elemento desse regime). No seu sentido mais
linear, o Governo pode legislar, em geral, sobre direitos sociais, mas não
sobre direitos de liberdade. Podemos discordar da solução, considerá-la
discutível, inconveniente, mas, sem dúvida, existe e tem consequências
orgânicas importantes.
Feito este reconhecimento, diremos, ainda assim, que as
consequências de tal opção do legislador constituinte seriam, porém, bem mais
drásticas, se o regime orgânico de protecção dos direitos, liberdades e
garantias fosse tomado a sério, ou
seja, se a justiça constitucional impedisse, de facto, o Governo de legislar,
sem autorização, sobre direitos, liberdades e garantias. É que, se assim fosse,
ou o Governo teria de pedir autorização legislativa para praticamente todos os
diplomas —o que degradaria o instituto e inviabilizaria os fins que presidiram
à sua instituição— ou praticamente todos os diplomas por ele aprovados seriam
parcialmente inconstitucionais.
Com efeito, considerando o extraordinário leque de direitos,
liberdades e garantias constitucionalmente acolhidos, considerando a
abrangência praticamente ilimitada de direitos deste tipo como são o direito de
iniciativa económica privada, o direito de propriedade, a liberdade de
profissão e, sobretudo, o direito ao desenvolvimento da personalidade, podemos
dizer que é praticamente impossível encontrar um diploma governamental que,
directa ou indirectamente, não legisle sobre ou não afecte direitos, liberdades
e garantias.
Ora, como as consequências práticas da tomada a sério da reserva constitucional seria inviável e
dogmaticamente inconveniente, o
Tribunal Constitucional vê-se obrigado a grandes contorcionismos para não
acolher todas as impugnações de inconstitucionalidade que lhe chegam a
propósito, nomeadamente no domínio da fiscalização concreta, e tende a
refugiar-se ou a decidir como se reservado ao Parlamento estivesse apenas a
regulação das matérias que compõem o conteúdo essencial destes direitos. Sem
sustentação positiva constitucional, é certo, mas, no fundo, consistindo numa
adesão problemática implícita à chamada tese da essencialidade que, em nosso entender, é a que mais adequadamente
responde às necessidades de repartição constitucional de competências em Estado
de Direito e a que, entre nós, deveria sustentar a distribuição da legislação
democrática entre parlamento e executivo[19].
Porém, se esta fuga ou
escapatória é possível no domínio dos
direitos de liberdade, ela já não é justificável quanto aos direitos sociais
onde, essencial ou não, tudo parece caber, com as poucas excepções referidas
nos artigos 164º e 165º da Constituição, na competência autónoma do Governo. É
certo que o carácter politicamente controverso da legislação sobre os aspectos
mais importantes dos direitos sociais induz o executivo a remeter a respectiva
legislação para o parlamento, mas se, ou quando, não o fizer, não há como
atalhar juridicamente a questão.
Por exemplo, nos estritos termos jurídico-constitucionais, o
Governo está obrigado a remeter para a Assembleia da República, ou a pedir a
correspondente autorização, a regulação dos aspectos marginais, eventualmente
consensuais, por anódinos, de todo e qualquer direito integrante do alargado
elenco de direitos, liberdades e garantias, mas já teria sido organicamente
competente para legislar —embora, na prática, não o faça— sobre todo o regime
do rendimento social de inserção ou do rendimento mínimo garantido, mesmo que o
estivesse a fazer de forma considerada pelo próprio Tribunal como violadora da
dignidade humana.
Donde que, no termo da linha de abordagem do problema do
pretenso regime de protecção especial dos direitos, liberdades e garantias,
possamos, afinal, concluir que um tal regime diferenciado se limita à questão
orgânica, a da repartição de competências entre Assembleia da República e Governo,
e, ainda assim, com inconsistência e inconvenientes manifestos.
Naturalmente, essa repartição orgânica de competências só
faria sentido à luz de um critério material, fosse ele a importância da matéria
em causa, a sua relevância jurídica ou o seu carácter politicamente
controverso. Seria em função dessa diferença que se justificaria ou não remeter
a aprovação do diploma para o processo mais moroso, pesado, mas simultaneamente mais democrático, mais transparente e
de legitimidade democrática reforçada como é o processo de aprovação
parlamentar das leis. Ora, como se viu, o único critério constitucional
operativo para distinguir entre direitos, liberdades e garantias e direitos
sociais não é um critério material, atinente à relevância, mas um critério essencialmente
estrutural, atinente à diferente determinabilidade de conteúdo e natureza dos
deveres estatais da correspondente realização. Porém, um tal critério é
completamente inapto, em Estado democrático, para fundar uma repartição de
competências legislativas entre Executivo e Parlamento.




[1]
Cf., assim, as diferentes perspectivas de GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição Anotada, cit., pp. 58 s, 62
ss, 136 ss; JORGE MIRANDA, A Constituição
de 1976, cit., pp. 334 ss; MARCELO REBELO DE SOUSA, Direito Constitucional, cit., pp. 159 s, p. 173; VIEIRA DE ANDRADE,
Os Direitos Fundamentais…, cit., 1ª
ed., pp. 66 ss.
[2]
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições…,
cit., pp. 145 ss; Os Princípios…,
cit., pp. 292 ss; Direitos Fundamentais…,
cit., pp. 196 ss; "'Direito, liberdade ou garantia': uma noção imprestável
na justiça administrativa?", cit.
[3]
Cf., por todos, a resenha de MELO ALEXANDRINO, A Estruturação…, cit., II, pp. 212 ss. Note-se, porém, que apesar
de, nas pp. 240 s, MELO ALEXANDRINO declarar adesão à nossa proposta de
distinção direitos, liberdades e garantias/direitos sociais, posição que
sintetiza essencialmente na definição de direitos, liberdades e garantias que
dá na p. 219, as consequências dogmáticas que retira são particularmente
distintas, mormente por força da já referida desqualificação constitucional dos
direitos sociais a que procede, bem como da recusa talhante de atribuição de
jusfundamentalidade aos direitos sociais
derivados.
[4]
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições…,
cit., pp. 145 ss; Os Princípios
Constitucionais…, cit., pp. 192 ss.
[5]
Cf. JORGE REIS NOVAIS, "'Direito, liberdade ou garantia': uma noção constitucional
imprestável na justiça administrativa?" in CJA, 73, 2009, pp. 44 ss.
[6]
Por exemplo, se estiver em causa uma agressão ou ameaça de violação do bem
jusfundamental saúde pessoal (uma autorização de uma indústria ou de
comercialização de um produto comprovadamente poluentes ou nocivos para a saúde
das pessoas), se o particular invocar a lesão do direito à protecção da saúde
não pode recorrer à intimação para protecção de direito, liberdade e garantia
porque, supostamente, se trata de um direito social (art. 64º da Constituição),
mas se, no mesmo caso e nas mesmas precisas circunstâncias, em vez daquele
direito invocar antes a lesão do bem integridade física, aí já não haverá
qualquer problema porque, supostamente, o direito à integridade pessoal (art.
25º da Constituição) é um direito, liberdade e garantia…
[7]
JORGE REIS NOVAIS, "'Direito, liberdade ou garantia'…", cit., p. 52.
[8]
Cf., designadamente, JORGE REIS NOVAIS Direito
Fundamentais…, cit., pp. 196 ss;
sustentando também, entre nós, a existência de um regime comum para
direitos de liberdade e direitos sociais, ou, pelo menos, a não relevância,
para efeitos de regime aplicável, da contraposição direitos de
liberdade/direitos sociais, cf. VASCO PEREIRA DA SILVA, por último em A Cultura…, cit., pp. 133 ss; ANDRÉ
SALGADO MATOS, O Direito ao Ensino…,
cit., maxime pp. 18 s; ISABEL
MOREIRA, A Solução…, cit.
[9]
Cf. infra, 4.1., sobre a
jurisprudência constitucional referente aos direitos sociais.
[10]
Independentemente do que seja o alcance real desta garantia que, em nosso
entender, para dizer o mínimo, fica muito longe do relevo que normalmente lhe é
atribuído. Cf. JORGE REIS NOVAIS, As
Restrições…, cit., pp. 779 ss.
[11]
Curiosamente, veja-se como Autores que, no plano teórico, resistem à adopção de uma dogmática unitária, quando colocados
perante a situação concreta, tratam exactamente o problema como nós fazemos, ou
seja, concebendo uma eventual afectação retroactiva de um direito social
enquanto restrição ilegítima a direito fundamental (assim GOMES CANOTILHO/
VITAL MOREIRA, Constituição…, cit.,
I, p. 819, a propósito do direito à segurança social).
[12]
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições…,
cit., passim.
[13]
Com muito poucas excepções, a doutrina tem expressa ou tacitamente reconhecido
este entendimento e, recentemente, se ainda se considerasse tal necessário, o
Tribunal Constitucional passou, por unanimidade, a certidão de óbito à posição contrária. De facto, ao longo de mais
de trinta anos de vigência da norma em causa, nunca ela serviu ao Tribunal
Constitucional como fundamento autónomo para inconstitucionalização de qualquer
lei restritiva emitida sem a pretensamente necessária autorização
constitucional expressa. De resto, no Acórdão nº 136/05, a propósito da
eventual restrição do direito à informação para acesso ao Direito, o Tribunal
Constitucional aderiu implicitamente ao entendimento que perfilhamos, admitindo
outras restrições para além das expressamente autorizadas pela Constituição.
Mas, recentemente, no Acórdão nº 421/09, o Tribunal foi confrontado com pedido
de fiscalização preventiva da constitucionalidade do regime de venda forçada de
imóveis para efeitos de reabilitação urbana, com a particularidade de o
Presidente da República fundar o essencial do seu pedido na pretensa
inconstitucionalidade da lei por falta de autorização constitucional expressa
para a correspondente restrição do direito de propriedade. Ora, não podendo,
face ao pedido, evitar confrontar-se directamente com a discutida relevância
normativa do comando do art. 18º, nº 2, primeira parte, da Constituição, e
embora reconhecendo o carácter restritivo das normas ordinárias em questão,
pura e simplesmente o Tribunal considerou —ainda que não tomando, como é
compreensível, qualquer posição própria na controvérsia doutrinária em questão—
que a inexistência de autorização constitucional expressa para restringir não
era fundamento para a pronúncia de inconstitucionalidade.
[14]
Cf. JORGE REIS NOVAIS, Direitos
Fundamentais…, cit., pp. 69 ss; "O Provedor de Justiça…", cit.
[15]
Cf, supra, B III, 2.1.
[16]
Cf., por todos, JORGE MIRANDA, Manual…,
cit., IV, pp. 286 ss.
[17]
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições…,
cit., pp. 149 ss.
[18]
No mesmo sentido, cf. M. AFONSO VAZ, "O enquadramento
jurídico-constitucional …", cit.,, pp. 437 s.
[19]
Cf. demonstração desenvolvida em JORGE REIS NOVAIS, As Restrições…, cit., pp. 821 ss, maxime 872 ss.

Sem comentários: