sexta-feira, 13 de abril de 2012
A FORÇA JURÍDICO–CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS
A FORÇA JURÍDICO–CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS SOCIAIS NO ESTADO CONSTITUCIONAL Osvaldo Ferreira de Carvalho 1 1Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC GOIÁS. Goiânia, Goiás, Brasil osvaldofc@hotmail.com Resumo – O artigo analisa a força jurídico–constitucional dos direitos sociais ao constituírem, pois, verdadeiros direitos fundamentais, afirmando-se no caráter supremo, material e formal da Constituição e traduzem-se juridicamente na vinculação de todos os poderes públicos à sua força normativa, como também ao reconhecer-lhes aplicabilidade imediata e direta independentemente de interposição legislativa. Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos sociais. Força normativa. Aplicabilidade imediata. Abstract – The article examines the legal and constitutional power of social rights by setting up, therefore, genuine fundamental rights, stating in the supreme character, material and formal constitution and translate into legally binding on all public authorities to their normative force, as also to recognize their applicability regardless of immediate and direct legislative interposition. Keywords: Fundamental rights. Social rights. Normative force. Immediate applicabil 1. Introdução O artigo ocupar-se-á acerca da necessidade de afirmação de fundamentalidade dos direitos sociais e sobre o correto tratamento dado às normas programáticas e às normas definidoras de direitos sociais fundamentais ao examinar o real alcance da eficácia das normas jurídicas dessa categoria de direitos fundamentais. Em seguida, será analisado o significado e a aplicabilidade do art. 5º, § 1º da Constituição Federal de 1988 ao sustentar que os direitos sociais são, inegavelmente, direitos fundamentais, seja porque se destinam a prover o indivíduo de meios de subsistência ao garantir-lhe o mínimo existencial, seja porque evidenciam o grau de democracia do Estado. A Constituição de 1988 os inclui expressamente entre os direitos fundamentais do Título II de seu texto. Os direitos sociais aí consagrados, bem como outros esparsos no texto da Constituição, em especial, no Título VIII (Da Ordem Social), são essenciais para a evolução e consolidação do Estado Constitucional. 2. Necessidade de afirmação da fundamentalidade dos direitos sociais Os direitos fundamentais (aí abrangidos os direitos sociais) representam uma das escolhas políticas básicas da comunidade; incorporados na Constituição, dotam-na de um componente material–valorativo ligado à dignidade da pessoa humana2 que se irradia para toda a ordem jurídica e funciona como parâmetro vinculante de qualquer atuação estatal.3 A ideia de escolha política é referenciada para deixar claro que há a decisão de positivar e proteger os direitos do homem, tornando-os direitos fundamentais de uma determinada ordem política positiva; entretanto, não 2 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: direitos fundamentais. 3. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. t. 4. p. 10–11, 180–181. Segundo o jurista lusitano, a Constituição, apesar do seu caráter compromissório, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais e ela repousa na dignidade da pessoa humana. Além disso, sustenta que os direitos, liberdades, e garantias, bem como os direitos econômicos, sociais e culturais têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa. Idem, p. 180–181. 3 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 112–113. deve, por outro lado, obscurecer que a dignidade da pessoa humana não se coloca para o Estado como uma escolha, mas antes como um dado prévio e indisponível.4 4 Idem, p. 43. 5 O artigo 1º da CRP/1976 dispõe, in verbis: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. 6 Ingo Wolfgang Sarlet, na linha desta influência kantiana, centrada na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa, propõe o seguinte conceito de dignidade da pessoa humana: “[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co–responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. SARLET, 2007, p. 62. 7 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da república portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 55–64. 8 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 600. 9 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006. p. 12. No mesmo sentido também é a opinião de Cristina Queiroz ao lecionar que no moderno Estado de Direito Democrático e Constitucional por ser um Estado de Direitos Fundamentais, o Interessa anotar que as Constituições brasileira e portuguesa foram inequívocas na consagração da dignidade da pessoa humana, conforme se lê nos artigos 1º, inciso III; 170, caput; 226, § 7º; 227, caput; 230, caput da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988) e no artigo 1º da Constituição da República portuguesa de 1976 (CRP/1976)5 ao ficar apenas com previsões textuais. A dignidade da pessoa humana, como valor que informa o sistema de direitos fundamentais e mesmo todo o sistema constitucional, não deve ser entendida segundo interpretações particulares, ainda que seja possível identificar uma raiz kantiana.6 Como adverte Jorge Reis Novais, a dignidade não deve ser entendida segundo um padrão oficial, trata-se, ao contrário, de entendê-la de forma pluralista, aberta e tolerante; cada um define seus planos e forma de vida inseridos em sua própria compreensão de dignidade.7 É a dignidade da pessoa humana compreendida nestes termos, como informadora e justificadora do Estado, o valor fundante da ordem jurídica estatal e que se concretiza, em graus variados, na positivação dos direitos fundamentais. A fundamentalidade dos direitos fundamentais – aí se incluem os direitos sociais – no Estado Constitucional pode ser condensada na fórmula de Paulo Bonavides, segundo a qual os “direitos fundamentais são a bússola da Constituição”8 ou, dito de outro modo, tem-se um Estado de direitos fundamentais, fundado na dignidade da pessoa humana.9 status positivus deve voltar a ser posicionado no mesmo plano do status negativus. QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais: princípios dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 88. 10 Jorge Miranda ensina que a dignidade da pessoa humana situa a pessoa como fundamento e fim da sociedade e do Estado. MIRANDA, 2000, p. 180. Veja também as ilações de Antonio Enrique Pérez Luño – LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución. 9. ed. Madrid: Tecnos, 2005. p. 116–119. 11 ALEXY, Robert, Teoría de los derechos fundamentales. Tradução de Carlos Bernal Pulido. 2. ed. Madri: Centro de Estudios Politicos e Constitucionales, 2007. p. 461–463. 12 É importante registrar que a noção de norma de direito fundamental é mais ampla que o conceito de direito fundamental. É que os catálogos de direitos fundamentais, normalmente, contêm comandos normativos que não outorgam direitos. Como bem observa Alexy, embora seja certo que a um direito fundamental sempre corresponde uma norma de direito fundamental válida e eficaz, o inverso nem sempre ocorre. Alexy, ao examinar o tema, destaca que, caso fosse adotada uma definição que afirmasse que são normas de direito fundamental apenas aquelas que outorgam direitos fundamentais – de modo que as duas expressões seriam sempre as “duas caras de uma mesma moeda” – seria preciso admitir a existência de normas que, a despeito de estarem estabelecidas por meio de formulações contida nos catálogos de direitos fundamentais, não poderiam ser chamadas normas de direitos fundamentais. Afirma o autor que tal concepção não é adequada ao direito positivo, pois os catálogos de direitos fundamentais usualmente veiculam normas em relação às quais não há direito subjetivo correspondente. Sob esse prisma conclui que “[...] é aconselhável, por isso, tratar o conceito de norma de direito fundamental como um conceito que pode ser mais amplo que o conceito de direito fundamental”. ALEXY, 2007, p. 31–32. 13 De acordo com o escólio de Robert Alexy as normas de direitos fundamentais são as normas A ideia de Estado de Direitos Fundamentais permite perceber a centralidade assumida pelos direitos fundamentais – e mais propriamente pela dignidade da pessoa humana – nos textos constitucionais e na estruturação e na atuação estatais; não mais se concebe a Constituição como instrumento normativo voltado primordialmente à organização do poder, mas como instrumento organizador de um poder que se volta ao reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais.10 O Estado deve se mover no espaço dos direitos fundamentais. Logo, não é difícil compreender, desse modo, porque se acentua a ideia de fundamentalidade. Robert Alexy afirma que a fundamentalidade das normas jusfundamentais para o sistema resulta de suas dimensões formal e material; a primeira refere-se à posição que tais normas ocupam no ápice da estrutura escalonada do ordenamento jurídico, como direitos que vinculam diretamente os poderes estatais (Legislativo, Executivo e o Judiciário), o que somente se compreende por completo no âmbito de um modelo constitucional nem puramente procedimental nem puramente material.11 Segundo leciona Robert Alexy, à fundamentalidade formal soma-se a fundamentalidade material ao significar que direitos fundamentais12 e normas de direitos fundamentais13 são materialmente fundamentais porque “[...] com eles se tomam decisões sobre a estrutura normativa básica do Estado e da sociedade. Isso vale independentemente do quanto de diretamente expressas pelos enunciados contidos no texto constitucional. ALEXY, 2007, p. 48. 14 ALEXY, 2007, p. 462. Tradução nossa. 15 SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 88–89. 16 Idem, p. 89. 17 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003. p. 379, 407–410. 18 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 561. conteúdo é a eles atribuído”.14 Ingo Wolfgang Sarlet, em sentido análogo, considera que se pode cogitar de uma fundamentalidade formal dos direitos fundamentais nos seguintes aspectos: (a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico; (b) encontram-se incluídos nos limites de revisão constitucional; (c) cuida-se de normas diretamente aplicáveis e que vinculam de forma imediata as entidades públicas e privadas (art. 5º, § 1º da CF/1988).15 Já fundamentalidade material decorre do fato de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material ao conter as decisões axiológicas fundamentais adotadas pelo constituinte sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade.16 Canotilho extrai consequências semelhantes da fundamentalidade destes direitos e expõe suas funções, quais sejam: função de defesa ou liberdade, de prestação social, de proteção perante terceiros e de não discriminação.17 Paulo Bonavides, em atenção à teoria desenvolvida por Carl Schmitt sobre os direitos fundamentais, este estabeleceu dois critérios formais para a identificação dos direitos fundamentais: (a) são direitos fundamentais todos aqueles assim especificamente nomeados no texto da Constituição; (b) são direitos fundamentais os direitos dotados de maior proteção pelo constituinte, seja em virtude de sua imutabilidade sob a ótica da reforma constitucional (cláusulas pétreas), seja em virtude da criação de procedimentos mais complexos de modificação.18 De acordo com os critérios acima, seriam direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 todos aqueles enumerados no Título II, denominados “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, bem como aqueles a que se refere à norma do art. 60, § 4º, IV ao estabelecer cláusulas pétreas não sujeitas à deliberação de reforma constitucional. Consoante o primeiro critério, é certo que os direitos sociais previstos no Capítulo II da Constituição Federal representam direitos fundamentais. A dúvida pairaria sobre os direitos previstos no Título VIII, que trata da Ordem Social. Uma interpretação sistemática do texto constitucional auxiliaria na solução da questão. De fato, ao enumerar como direitos sociais o direito à educação, à saúde, à alimentação, à moradia, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, e à assistência aos desamparados; o art. 6º determinou que a proteção destes direitos se desse “na forma desta Constituição”. Significa que, apesar da falta de sistematização, o constituinte remeteu o intérprete precisamente ao Título VIII, que trata da ordem social, onde seus diversos dispositivos explicitam a forma como se dará a efetivação dos direitos sociais previstos no art. 6º. Precisamente neste Título encontra-se sediada a maior parte dos direitos fundamentais fora do catálogo constitucional, como o direito à educação fundamental (art. 208, I, § 1º) e à saúde (art. 196), os quais são autênticos direitos sociais fundamentais. Ao observar a Constituição brasileira de 1988, Ingo Wolfgang Sarlet salienta que o critério formal – apesar de relevante – não permite uma identificação completa dos direitos fundamentais.19 E isso se deve, especialmente, ao fato de a própria Constituição prever direitos fundamentais fora do catálogo do Título II, sejam direitos dispersos no texto constitucional (e, neste sentido, pode-se fazer referência aos direitos fundamentais previstos nos títulos “Da Ordem Econômica” e da “Da Ordem Social”), sejam direitos decorrentes dos princípios e do regime constitucional, sejam, ainda, direitos oriundos de tratados internacionais. 19 SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 89–90. 20 SARLET, 2007b, p. 97. Além disso, conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet, que a regra contida no art. 7º da CF/1988, cujos incisos especificam os direitos fundamentais dos trabalhadores, prevê expressamente, em seu caput (“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”), a abertura a outros direitos similares. Logo, o rol dos direitos sociais (art. 6º) e o dos direitos sociais dos trabalhadores (art. 7º) são – segundo a dicção do art. 5º, § 2º, da CF/1988 – meramente exemplificativos, de modo que ambos podem ser perfeitamente qualificados de cláusulas especiais de abertura.20 A utilidade de um conceito material de direitos sociais fundamentais não se revela exclusivamente como critério para a identificação dos direitos fundamentais fora do catálogo do Título II da Constituição Federal, mas também para informar o intérprete acerca de quais valores foram levados em consideração pelo constituinte para a previsão constitucional destes direitos. Esta preocupação com o valor se depreende das lições do publicista português Jorge Miranda que ao elaborar o conceito material dos direitos fundamentais faz referência aos “direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa, como os direitos que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível atual de dignidade, como as bases principais da situação jurídica de cada pessoa [...]”.21 O expoente publicista reconhece que um conceito material de direitos fundamentais será sempre relativo, visto que deverá respeitar as posições filosóficas, políticas e éticas de cada constituinte, em cada país.22 De qualquer modo, o apego ao valor e à dignidade da pessoa humana são critérios materiais de relevância. 21 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: direitos fundamentais. 4. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. t. 4. p. 11–12. 22 Idem, p. 9–10. 23 Registre-se a profícua lição expendida por Santiago Sastre Ariza ao ensinar que não se deve atribuir a dimensão prestacional somente no espaço dos direitos sociais. De acordo com este autor, estudar os direitos individuais como aqueles que se associam com deveres de omissão ou abstenção e os direitos sociais como aqueles que se vinculam com deveres de ação ou obrigações positivas, que demandam uma prestação concreta, pode resultar numa compreensão deficiente destes direitos, visto ser um enfoque muito reducionista que não se ajusta à atuação real que comportam estes direitos. A Crítica apontada pelo citado autor é que nem todos os direitos individuais exigem deveres de omissão, nem todos os direitos sociais demandam obrigações (prestações) positivas, uma vez que qualquer direito pressupõe algum tipo de ação positiva pelo Estado. O caráter prestacional, para o referido autor, se converte em uma característica que não é exclusiva dos direitos sociais, porém é comum a todos os direitos. Afirma, no entanto, que a natureza prestacional ou a atividade do poder público parece ter um maior peso A dignidade da pessoa humana exige atuações estatais positivas, prestacionais, além das clássicas abstenções impostas pelos direitos de liberdade; em outras palavras, a dignidade da pessoa não se satisfaz com os direitos de liberdade, exige a previsão e eficácia de direitos sociais que garantam as condições materiais de vida digna e de desenvolvimento da personalidade. Se a dignidade da pessoa humana é o valor central na justificação e imposição dos direitos fundamentais, forçoso reconhecer a impossibilidade de restringir esta categoria aos tradicionais direitos de liberdade. Os direitos fundamentais no Estado Constitucional necessariamente englobam alguma dimensão prestacional; logo, obrigatoriamente abarcam os direitos sociais.23 ou uma significação mais especial no caso dos direitos sociais. ARIZA, Santiago Sastre. Hacia una teoría exigente de los derechos sociales. Revista de Estudios Políticos, Madrid, n. 112, p. 256, abr./jun. 2001. 24 SÃO PAULO (Estado). Lei nº 9.495, de 4 de março de 1997. Dispõe sobre a obrigatoriedade das empresas privadas que atuem sob a forma de prestação direta ou intermediação de serviços médico–hospitalares a garantirem atendimento a todas as enfermidades relacionadas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde. “Artigo 1º - As empresas de seguro–saúde, empresas de Medicina de Grupo, cooperativas de trabalho médico, ou outras que atuem sob a forma de prestação direta ou intermediação dos serviços médico–hospitalares e operem no Estado de São Paulo, estão obrigadas a garantir o atendimento a todas as enfermidades relacionadas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde, não podendo impor restrições quantitativas ou de qualquer natureza”. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/171843/lei-9495-97-sao-paulo-sp>. Acesso em: 13 set. 2009. 25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (Medida Liminar) nº 1.595–SP. Requerente: Confederação Nacional do Comércio. Requerido: Governador do Estado de São Paulo e Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Relator: Ministro Eros Grau. Data do julgamento pelo Plenário da liminar: 30.04.1997. Acórdão publicado no Diário da Justiça em 7.12.2006. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 13 set. 2009. O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a dimensão prestacional outorgada aos direitos sociais – com destaque especial para o direito à saúde – que constituem direitos a prestações positivas, podendo o interessado exigir do Estado meios concretos para exercê-los. Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello ao votar, embora tenha sido vencido, na Ação Direta de Inconstitucionalidade contra lei do Estado de São Paulo24 que obrigava os planos de saúde a garantir o atendimento a todas as enfermidades, sem exceções, consignou: [...] O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas – impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem, como no caso, providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional. Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à vida e à saúde – se qualifica como prerrogativa inderrogável.25 As peculiares características dos direitos sociais, por vezes associadas à técnica de positivação, não permitem negar-lhes o caráter de direitos fundamentais. Se isso já seria indefensável no campo teórico, com maior razão o é perante as Constituições brasileira e portuguesa, que não deixam qualquer dúvida acerca da fundamentalidade de tais direitos e, configurando Brasil e Portugal como Estados de Direito Democráticos e Sociais, denominado de Estado Constitucional ao alocarem os direitos sociais em posição central. Não é, ainda, de desconhecer que a positivação destes direitos nestas Constituições se deu, muitas vezes, por preceitos detalhados.26 26 NETTO, Luísa Cristina Pinto e. Os direitos sociais como limites materiais à revisão constitucional. Salvador: Editora Juspodivm, 2009. p. 43. 27 QUEIROZ, 2006, p. 90, 119. 28 Idem, p. 90. Daniel Sarmento aduz que o reconhecimento da dimensão subjetiva dos direitos sociais não exclui a presença da sua dimensão objetiva, visto ser possível detectar a força irradiante dos direitos sociais que os torna diretrizes importantes para interpretação de outras normas e atos jurídicos, bem como o dever do Estado de proteger perante terceiros os bens e valores subjacentes existentes nos direitos sociais e a obrigação estatal de instituir organizações e procedimentos aptos à realização destes direitos. SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético–jurídicos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. (Coord.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 568. 29 QUEIROZ, 2006, p. 16, 90. Cristina Queiroz ensina que os direitos sociais configuram-se como direitos fundamentais reconhecidos por normas de estalão constitucional.27 Nestes precisos termos, segundo ela, “[...] não vemos como não possam ser igualmente constituídos como ‘posições jurídicas jusfundamentais’, isto é, como ‘direitos subjetivos’”.28 Desfrutar de um direito subjetivo no caso dos direitos sociais fundamentais, conforme lição de Cristina Queiroz, significa ter o poder de requerer perante outro sujeito um determinado comportamento, pois o conteúdo do direito social pressupõe um comportamento, ou seja, um dever de proteção e uma ação positiva, que o respectivo titular pode exigir a outro sujeito (poderes públicos).29 Assim, pode-se afirmar, na esteira do pensamento de José Carlos Vieira de Andrade, que os direitos sociais, como direitos fundamentais, possuem força jurídica que pode ser traduzida: (a) Na imposição do dever de legislar para tornar tais direitos exequíveis – dever sancionado com a inconstitucionalidade omissiva; (b) Na sua configuração como padrão jurídico de controle judicial da validade de normas jurídicas; (c) Na imposição de interpretação mais favorável aos direitos fundamentais; (d) Na sua virtualidade de fundamentar restrição a outros direitos fundamentais; (e) Na sua força irradiante que confere certa capacidade de resistência diante das alterações normativas.30 Resta verificar se também deve ser incluída neste rol a força jurídica dos direitos sociais para se oporem a alterações constitucionais.31 30 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2004. p. 393. 31 Sustenta-se que deve ser incluída neste rol a força normativa dos direitos sociais contra as modificações constitucionais. É o que se verá no item 3.8 – a natureza cláusula pétrea dos direitos sociais. 32 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da república portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 298–302. 33 SARLET, 2007b, p. 312–317. Jorge Reis Novais ao versar sobre a relevância jurídico–constitucional dos direitos sociais destaca: (a) que eles se colocam como elementos imprescindíveis para a compreensão do Estado de Direito atual e configuram critérios de interpretação das demais normas constitucionais; (b) atuam como fundamento para restrição a direitos, liberdades e garantias; (c) são vulneráveis à ocorrência de inconstitucionalidade por omissão; (d) são também vulneráveis no plano da eventual inconstitucionalidade por ação que resulte da violação específica dos direitos sociais.32 Na mesma esteira, Ingo Wolfgang Sarlet acentua a eficácia vinculante dos direitos sociais mesmo que venham a reclamar uma eventual interposição legislativa, registrando que estes direitos consagrados constitucionalmente: (a) Impõem a revogação dos atos normativos anteriores à Constituição contrários ao conteúdo da norma de direito fundamental; (b) Impõem ao legislador o dever de legislar conforme os direitos fundamentais; (c) Impõem a declaração de inconstitucionalidade dos atos contrários posteriores à Constituição; (d) Constituem parâmetro para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; (e) Geram algum tipo de posição jurídico–subjetiva; (f) Geram uma proibição de retrocesso social, ou seja, uma proibição para o legislador de abolir as posições jurídicas legalmente criadas.33 Daniel Sarmento ao manifestar-se sobre a proteção judicial dos direitos sociais preconiza que estes por serem garantidos pelo Estado por meio de políticas públicas não os torna imunes ao controle judicial.34 Sustenta que os direitos sociais por constituírem autênticos direitos e, nesta qualidade, podem e devem ser assegurados pela via jurisdicional em casos de omissões injustificáveis ou arbitrariedades das autoridades competentes.35 34 SARMENTO, 2008, p. 580. 35 Idem, p. 580. 36 SARLET, 2007b, p. 309. 37 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2008. p. 171. 3. Normas programáticas e normas definidoras de direitos sociais fundamentais A eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais programáticas sempre foi palco de debates doutrinários, representando o maior desafio do Direito Constitucional contemporâneo. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, cuida-se de normas que estabelecem programas, finalidades e tarefas a serem implementados pelo Estado ou que contêm determinadas imposições de maior ou menor concretude dirigidas ao legislador.36 Conforme escólio de Dirley da Cunha Júnior, na Itália autores como, por exemplo, Gaetano Azzariti, sustentaram que as normas programáticas ou diretivas se limitam a indicar uma via ao legislador futuro, não sendo nem mesmo verdadeiras normas jurídicas, negando-lhes qualquer eficácia. Para essa doutrina tradicional, consoante lição de Dirley da Cunha Júnior, a falta de juridicidade das normas programáticas obsta o cidadão invocá-las nos tribunais para pedir o seu cumprimento, ainda que contemplassem direitos sociais.37 Com efeito, em conformidade com o pensamento de Dirley da Cunha Júnior, o caráter aberto e diretivo das normas programáticas, sobretudo as atributivas de direitos sociais e econômicos, devem ser entendidas como diretamente aplicáveis e imediatamente vinculantes de todos os órgãos do Poder. Se a Constituição é, toda ela, norma jurídica, todos os direitos nela contemplados têm aplicabilidade direta, vinculando tanto o Judiciário, quanto o Executivo e o Legislativo. Reforça essa tese o § 1º do art. 5º da Constituição Federal de 1988. A Constituição brasileira define um modelo econômico de bem–estar.38 Tal modelo converge para o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I da CF/1988), garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º, II da CF/1988), erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III da CF/1988), promoção do bem de todos (art. 3º, IV da CF/1988), a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, caput da CF/1988). 38 Idem, p. 171. Não é diferente a posição de Ingo Wolfgang Sarlet, para o qual todas as normas consagradoras de direitos fundamentais, incluindo as normas definidoras de direitos sociais, são dotadas de eficácia e, em certa medida, diretamente aplicáveis no âmbito da constituição e independentemente de intermediação legislativa. SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 311–312. No mesmo sentido: MEIRELES, Ana Cristina Costa. A eficácia dos direitos sociais. Salvador: Editora Juspodivm, 2007. p. 381. 39 Nesse sentido conferir: DERBLI, Felipe. O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 225; BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 151; SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 152–155; SARLET, 2007b, p. 310–317; CANOTILHO, 2003, p. 1176–1177; MEIRELES, 2007, p. 241. 40 CRISAFULLI, 1952 apud CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 172. 41 CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 172. No plano científico, não pairam mais dúvidas nem subsistem mais questionamentos a respeito do caráter jurídico e, consequentemente, vinculante das normas constitucionais programáticas.39 O só fato de estas normas contemplarem direitos sociais dependentes de prestações positivas do Poder Executivo ou de providências normativas do Poder Legislativo, não lhes retira a eficácia jurídica. Dirley da Cunha Júnior ancorado nas lições de Vezio Crisafulli o qual sustenta que das normas programáticas podem surgir situações subjetivas que devem ser examinadas em um duplo aspecto: situações negativas ou de vínculo e situações positivas ou de vantagens.40 Pela situação de vínculo, reconhece-se que das normas programáticas deriva um vínculo para o legislador que, por terem tais normas uma fonte superior (a constituição), é de natureza obrigatória, de modo que a não observância dessas normas programáticas acarreta a invalidação total ou parcial do ato de exercício do poder.41 Segundo o jurista italiano, até as omissões ante a efetivação das normas programáticas gera a inconstitucionalidade do silêncio dos órgãos estatais.42 Também na defesa da eficácia jurídica e obrigatoriedade das normas programáticas, 42 Idem, p. 172. 43 Conforme escólio de Felipe Derbli serão normas constitucionais definidoras de direitos sociais “[...] aquelas das quais for possível deduzir, no curso da atividade interpretativa, uma posição jurídico–subjetiva de cunho social”. DERBLI, 2007, p. 233–234. 44 BARROSO, 2006, p. 102. Grifo no original. 45 Idem, p. 117. 46 Idem, p. 117. 47 Idem, p. 151. sobretudo as definidoras de direitos sociais,43 manifesta-se Luís Roberto Barroso para quem modernamente [...] já não cabe negar o caráter jurídico e, pois, a exigibilidade e acionabilidade dos direitos fundamentais, na sua múltipla tipologia. É puramente ideológica, e não científica, a resistência que ainda hoje se opõe à efetivação, por via coercitiva, dos chamados direitos sociais. Também os direitos políticos e individuais enfrentaram, como se assinalou, a reação conservadora, até sua final consolidação. A afirmação dos direitos fundamentais como um todo, na sua exequibilidade plena, vem sendo positivada nas Cartas Políticas mais recentes, como se vê do art. 2º da Constituição portuguesa e do Preâmbulo da Constituição brasileira, que proclama ser o país um Estado Democrático, “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”.44 Luís Roberto Barroso admite que possa haver direito subjetivo perante as normas programáticas, embora o seja, para o jurista, em sua versão negativa de exigir que o Poder Público se abstenha de praticar atos que contravenham seus ditames.45 Aduz a existência do direito de “[...] opor-se judicialmente ao cumprimento de regras ou à sujeição a atos que o atinjam, se forem contrários ao sentido do preceptivo constitucional”, o de “[...] obter, nas prestações jurisdicionais, interpretação e decisão orientadas no mesmo sentido e direção apontados por estas normas, sempre que estejam em pauta os interesses constitucionais por ela protegidos”,46 e sugere, para reflexão futura, a existência de possibilidade de invocação de uma norma constitucional programática para impor ao Poder Público determinada obrigação de fazer relacionada a prestações positivas.47 O que Luís Roberto Barroso assevera é tão mais verdadeiro quando se está perante a novel categoria jurídico–constitucional da omissão inconstitucional, que nada mais é do que a garantia de efetividade da constituição, o que enseja concluir, na esteira do pensamento de Dirley da Cunha Júnior, que: são tão jurídicas e vinculativas as normas programáticas, notadamente as definidoras de direitos sociais que, na hipótese de não realização destas normas e destes direitos por inércia dos órgãos de direção política (Executivo e Legislativo), caracterizada estará a inconstitucionalidade por omissão.48 48 CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 172–173. 49 CANOTILHO, 2003, p. 1176–1177. Cumpre assinalar a lição expendida por Ana Carolina Lopes Olsen, segundo a qual algumas normas de direitos sociais fundamentais se portam como regras, prevendo condutas determinadas a serem executadas pelos poderes públicos. Outras, entretanto, têm manifesto caráter principiológico, razão pela qual devem sofrer um processo de ponderação mediante argumentação jusrracional capaz de densificar seu conteúdo diante do caso concreto e aprimorar sua densidade normativa a ponto de torná-la imediatamente aplicável. Concebê-las como normas programáticas, incapazes de outorgar aos seus titulares o direito de exigir prestações estatais, bem como incapazes de gerar a responsabilidade do Estado pelo não cumprimento de seu conteúdo significa retirar a força normativa da Constituição, rebaixá-la a mera carta de boas intenções, incapaz de transformar a sociedade. OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 104. 50 CANOTILHO, 2003, p. 1177. 51 Idem, p. 1177. Do expendido, Canotilho salienta que as normas programáticas são reconhecidas de um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição e, além disso, não se deve falar de simples eficácia programática (ou diretiva), pois qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político.49 Segundo o jurista de Coimbra, a eventual mediação concretizadora, pela instância legiferante, das normas programáticas, não significa que essas normas careçam de positividade jurídica autônoma, isto é, que a sua normatividade seja apenas gerada pela interposição do legislador.50 De acordo com Gomes Canotilho a positividade jurídico–constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: (1) vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional); (2) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração como diretivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da atividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação, na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos atos que as contrariam.51 Ainda, conforme lição de Canotilho, ao versar sobre o princípio da democracia econômica, social e cultural (ou princípio da socialidade) em favor de novas premissas normativas da justiça econômico–social caracterizadas por uma maior abertura para o “social concreto”, por uma maior “normalidade social” desenvolvida ou implementada quer pelo Estado quer pelos cidadãos, aduz que o princípio da democracia econômica, social e cultural constitui uma autorização constitucional no sentido de o legislador democrático e de outros órgãos encarregados da concretização político–constitucional adotarem as medidas necessárias para a evolução da ordem constitucional sob a ótica de uma justiça constitucional nas vestes de uma justiça social.52 E, mais adiante, arremata ao afirmar que o princípio da democracia econômica, social e cultural 52 CANOTILHO, 2003, p. 338. 53 Idem, p. 342. 54 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 57–58, p. 233–256, 1981. 55 Idem, p. 252. 56 Idem, p. 252. [...] é uma imposição constitucional conducente à adoção de medidas existenciais para os indivíduos e grupos que, em virtude de condicionalismos particulares ou de condições sociais, encontram dificuldades no desenvolvimento da personalidade em termos econômicos, sociais e culturais (ex.: rendimento mínimo garantido, subsídio de desemprego). A atividade social do Estado é, assim, atividade necessária e objetivamente pública.53 A propósito do tema, é inevitável a alusão às lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, às quais se adere integralmente.54 O expoente jurista, ao cuidar da eficácia das normas constitucionais sobre a justiça social, em especial da eficácia da norma definidora do salário mínimo, sustenta que o Judiciário pode aplicar diretamente essa norma e fixar o valor do salário mínimo, quando ausente esse valor ou insuficiente ante as exigências da norma constitucional.55 Isso porque, à luz da norma constitucional da época em exame (art. 165, I da CF/1969), o mandamento normativo já descreve a utilidade a ser fruída – salário capaz de satisfazer as necessidades normais de um trabalhador e sua família, conforme as condições da região. Assim, a “[...] conduta devida, conquanto implícita, é decorrência imediata da textualidade da norma: pagar salário que atenda aos requisitos mencionados”.56 Após afirmar que nada mais exige a norma, senão que o empregador pague o salário ao empregado e, em seguida, ao acenar a conveniência de lei que fixe um salário mínimo suficiente, aduz que [...] Nada obstante, se houvesse omissão legal ou do Executivo, caberia a qualquer trabalhador a quem fosse pago salário abaixo do indispensável para atendimento das necessidades normais, acionar seu empregador para que cumprisse o dever constitucional. E o quantum devido seria fixado pelo juiz da causa, que nisto exerceria função nada diferente da que lhe assiste em inúmeros casos em que, por dever de ofício, reconhece o alcance e a extensão de outros conceitos vagos e imprecisos. Assim, quando fixa o “justo preço” de uma indenização ou quando arbitra “quantia módica”, ou quando estabelece a cabível pensão alimentar “na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada” ou quando verifica se alguém cuidou da coisa entregue em comodato “como se sua fora”, o que está a fazer é pura e simplesmente determinar o conteúdo destas noções fluidas.57 57 Idem, p. 252. 58 BANDEIRA DE MELLO, 1981, p. 253. 59 BANDEIRA DE MELLO, 1981, p. 254. 60 Idem, p. 254–255. Grifo nosso. Prossegue o supracitado jurista ao afirmar que: [...] Supor que é o Legislativo, e só ele, o titular da dicção do critério sobre o que seja o salário-mínimo – e não o Judiciário – implica proferir um absurdo jurídico incapaz de resistir à mais superficial análise. E muito pior seria atribuir ao Executivo exclusividade na inteligência de qual seria in concreto o salário mínimo cabível nas diferentes regiões do País. O intérprete das normas – quem diz a verdade jurídica – não é o Legislativo, nem o Executivo, mas o Judiciário. Ora, as disposições constitucionais são normas. Assim, o titular do poder jurídico de dizer sobre elas é, pois, o Judiciário.58 Por tudo isso, Celso Antônio Bandeira de Mello arremata que “[...] é irrecusável o direito dos cidadãos a postularem jurisdicionalmente os direitos que decorrem das normas constitucionais reguladoras da justiça social”.59 E acrescenta que [...] As disposições constitucionais relativas à justiça social não são meras exortações ou conselhos, de simples valor moral. Todas elas são – inclusive as programáticas – comandos jurídicos e, por isso, obrigatórias, gerando para o Estado deveres de fazer ou não–fazer. Há violação das normas constitucionais pertinentes à justiça social – e, portanto, inconstitucionalidade – quer quando o Estado age em descompasso com tais preceitos, quer quando, devendo agir para cumprir-lhes as finalidades, omite-se em fazê-lo. Todas as normas constitucionais concernentes à justiça social – inclusive as programáticas – geram imediatamente direitos para os cidadãos, não obstante tenham teores eficaciais distintos. Tais direitos são verdadeiros “direitos subjetivos”, na acepção mais comum da palavra. [...] Todas as normas constitucionais atinentes à justiça social – tenham a estrutura tipológica que tiverem – surtem, de imediato, o efeito de compelir os órgãos estatais, quando da análise de atos ou relações jurídicas, a interpretá-los na mesma linha e direção estimativa adotada pelos preceitos relativos à justiça social. Assim, tanto o Executivo, ao aplicar a lei, quanto o Judiciário, ao decidir situações contenciosas, estão cingidos a proceder em sintonia com os princípios e normas concernentes à justiça social. [...] Os direitos sociais fazem parte do acervo histórico, jurídico, ético e cultural dos povos civilizados. Integram o patrimônio cultural do povo brasileiro. Por isso se incluem no conceito de patrimônio público. Daí que sua lesão pode ensejar propositura de ação popular constitucional, com base no art. 153, § 31 [art. 5º, LXXIII da CF/1988 – nota nossa].60 Reforça esse entendimento a declaração jurídica de que o Estado (e é o caso do Estado brasileiro) se submete ao ideal de uma democracia substantiva ou material,61 compromissária com os propósitos da justiça social. Em decorrência disso, é possível sustentar que, na hipótese de omissão dos órgãos de direção política (Legislativo e Executivo), na realização das tarefas sociais, notadamente quando deflagradoras de direitos sociais, deva ocorrer um sensível deslocamento do centro destes órgãos mencionados, consoante preleção de Dirley da Cunha Júnior, para o plano da jurisdição constitucional.62 Isso porque, de acordo com o citado jurista, se com o advento do Estado Social e do papel fortemente intervencionista do Estado, o foco de poder/tensão passou para o Executivo, no Estado Democrático de Direito há (ou deveria haver) uma modificação desse perfil. Inércias do Poder Executivo e a falta de atuação do Poder Legislativo podem ser perfeitamente supridas pela atuação do Poder Judiciário mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos para esse fim na própria Constituição (como, por exemplo, o mandado de injunção, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e a arguição de descumprimento de preceito fundamental) que instituiu e organizou o Estado Democrático de Direito.63 61 Segundo magistério de Reis Friede, a democracia material (substantiva ou efetiva) denota características e atributos básicos que, na qualidade de genuínos elementos de concreção, ultrapassam em muito a concepção clássica (e limitada) da representatividade para forjar um autêntico binarismo complementar entre os denominados Estados dotados de plena legitimidade e de legalidade por intermédio de, pelo menos, cinco postulados fundamentais: (1) efetiva participação do povo (conjunto de nacionais) na atividade sociopolítico–estatal; (2) legitimidade do exercício do poder, ou seja, os mandatários e agentes de poder devem gozar de inconteste autorização do titular do poder político (povo); (3) prevalência da vontade da maioria, porém respeitando os direitos da minoria – os direitos das minorias são assegurados pelo texto constitucional e garantidos pela ação comissiva (e permanente) dos órgãos estatais; (4) regime de amplas liberdades em que há plena e sinérgica garantia do respeito aos direitos individuais e coletivos, inexistindo qualquer forma de inação ou omissão, neste particular, do Estado; (5) império da lei e da ordem legitimamente (consensualmente) estabelecido, em última análise, no texto constitucional. FRIEDE, Reis. Curso de ciência política e teoria geral do Estado: teoria constitucional e relações internacionais. 2. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 242, 249. 62 CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 175. 63 Idem, p. 176. 4. O princípio da aplicabilidade imediata e da plena eficácia das normas definidoras de direitos sociais fundamentais. Alcance do art. 5º, § 1º da Constituição Federal de 1988 Conforme dispõe o art. 5º, § 1º da Constituição Federal: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Essa previsão consiste impor aos poderes públicos a incumbência da tarefa e do dever de extrair das normas que os consagram (de todos os direitos fundamentais, até mesmo os não previstos no catálogo, como os constantes do título II, da CF/1988), a maior eficácia possível outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados relativamente às demais normas constitucionais que, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, não há como desconsiderar a circunstância de que a presunção da aplicabilidade imediata e plena eficácia que milita em favor dos direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua fundamentalidade formal no âmbito da Constituição. Assim, de acordo com o citado jurista, para além da aplicabilidade e eficácia imediata de toda a Constituição, na condição de ordem jurídico–normativa, percebe-se que o art. 5º, § 1º da Constituição Federal constitui, na verdade, um plus agregado às normas definidoras de direitos fundamentais, que tem por finalidade a de ressaltar a sua aplicabilidade imediata independentemente de qualquer medida concretizadora.64 64 SARLET, 2007b, p. 285–286. 65 Nesse sentido: ANDRADE, 2004, p. 392. Em sentido diverso, tem-se a posição de Jorge Miranda ao lecionar que os direitos econômicos, sociais e culturais são, em parte, suscetíveis de beneficiar de regras homólogas das regras formuladas para os direitos, liberdades e garantias, por modelação de princípios gerais do ordenamento jurídico. E assevera que “[...] ao tempo da entrada em vigor das normas constitucionais já se verificarem os pressupostos - econômicos, financeiros, Nesse sentido, percebe-se, desde logo, que o Constituinte, de acordo com Ingo Wolfgang Sarlet, não pretendeu excluir do âmbito do art. 5º, § 1º da CF/1988, os direitos políticos, de nacionalidade e os direitos sociais, cuja fundamentalidade parece inquestionável. Também não há como sustentar, no direito pátrio, a concepção lusitana (lá expressamente prevista na Constituição) de acordo com a qual a norma que consagra a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais abrange apenas os direitos, liberdades e garantias (Título II da CRP) que, em princípio, correspondem aos direitos de defesa, excluindo deste regime reforçado (e não apenas quanto a este aspecto) os direitos econômicos, sociais e culturais do Título III da Constituição portuguesa.65 A Constituição brasileira não estabeleceu institucionais – da efetivação, tais normas podem ser entendidas como tendo aplicação imediata (mesmo se o reconhecimento desses pressupostos e, por vezes, a determinação ou determinabilidade das normas exigem uma intervenção do legislador”. MIRANDA, 2000, p. 384. 66 SARLET, 2007b, p. 275. 67 Idem, p. 275. 68 DERBLI, 2007, p. 124; MEIRELES, 2007, p. 236; BARROSO, 2006, p. 105, 139–140. Nessa última obra citada, na página 139, Luís Roberto Barroso firma enfaticamente o entendimento de que “[...] As disposições constitucionais, já se demonstrou, são normas jurídicas dotadas de força normativa e aptas, em muitos casos, a produzir efeitos concretos independentemente de regramento ulterior. Conquanto isto pareça uma obviedade, tem sido ela tão longamente negligenciada que diversas Constituições modernas se viram na contingência de declarar expressamente a aplicabilidade imediata dos preceitos constitucionais”. Em sentido contrário, registre-se a opinião de André Ramos Tavares ao aduzir que não há como pretender a aplicação imediata, irrestrita, em sua integralidade, de direitos não definidos de maneira adequada no texto constitucional, visto que sua incidência ou distinção desta natureza entre os direitos de liberdade e os direitos sociais, encontrando-se todas as categorias de direitos fundamentais sujeitas, em princípio, ao mesmo regime jurídico.66 Ingo Wolfgang Sarlet sustenta que no capítulo reservado aos direitos sociais fundamentais na Constituição Federal de 1988 foram contempladas algumas posições jurídicas fundamentais similares (pela sua função preponderantemente defensiva e por sua estrutura jurídica) aos tradicionais direitos de liberdade como, por exemplo, o direito de livre associação sindical (art. 8º, CF/1988) e do direito de greve (art. 9º, CF/1988), normas cuja aplicabilidade imediata parece incontestável e que, também, é extensiva a diversos direitos dos trabalhadores relacionados no art. 7º e seus respectivos incisos.67 Por esses motivos, pode-se endossar, conforme averiguado na doutrina,68 a aplicabilidade imediata (por força do art. 5º, § 1º da CF/1988) de todos os direitos fundamentais constantes do catálogo (arts. 5º a 17 da CF/1988), bem como dos localizados em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. O ínclito jurista supracitado, em profícua análise, argumenta que os direitos fundamentais a prestação (que têm por objeto uma conduta positiva pelo destinatário, consistente, em regra, numa prestação de natureza fática ou normativa) são inequivocamente autênticos direitos fundamentais, constituindo direito imediatamente aplicável, nos termos do disposto no art. 5º, § 1º da CF/1988. À luz das demais normas constitucionais e independentemente de sua forma de positivação, os direitos fundamentais prestacionais, por menor que seja sua densidade normativa no âmbito da Constituição, sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos ao serem, nesta aptidão, direta e imediatamente estrutura ficam claramente a depender de integração por meio de lei. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 440. 69 SARLET, 2007b, p. 297. 70 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. A efetividade dos direitos fundamentais sociais e a reserva do possível. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de Direito Constitucional: direitos fundamentais. 2. ed. rev. e ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2007. p. 399. 71 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 35. 72 Idem, p. 35–36. 73 BARROSO, 2006, p. 139 74 Idem, p. 139–140. aplicáveis, empregando a eles a regra geral, visto que não existe norma constitucional destituída de eficácia e aplicabilidade.69 Impende informar, na esteira do pensamento de Dirley da Cunha Júnior, que a aplicação direta dos direitos fundamentais, compreendendo todos os que se encontram positivados no texto político fundamental, não significa apenas que se aplicam independentemente da intervenção legislativa, mas também que eles valem diretamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade com a Constituição Federal.70 Flávia Piovesan consigna que o princípio da aplicabilidade imediata de todos os direitos fundamentais realça a força normativa que eles detêm, prevendo tal princípio um regime jurídico específico endereçado a todos os preceitos constitucionais referentes aos direitos fundamentais.71 Para ela, cabe aos poderes públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental, visto que o princípio objetiva assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de feição fundamental, isto é, ele tem como escopo tornar os referidos direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelo Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.72 De acordo com Luís Roberto Barroso, as disposições constitucionais são normas jurídicas dotadas de força normativa e aptas, a produzir efeitos concretos independentemente de ulterior regramento.73 E ressalta que [...] quando se afigure pouco lógica a existência de uma regra afirmando que as normas constitucionais são aplicáveis, parece bem a sua inclusão no Texto, diante de uma prática que reiteradamente nega tal evidência. Por certo, a competência para aplicá-las, se descumpridas por seus destinatários, há de ser do Poder Judiciário. E mais: a ausência de lei integradora, quando não inviabilize integralmente a aplicação do preceito constitucional, não é empecilho à sua concretização pelo juiz, mesmo à luz do direito positivo vigente, consoante se extrai do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.74 Segundo o preclaro jurista lusitano José Carlos Vieira de Andrade, o princípio da aplicabilidade imediata torna impossível sustentar que os direitos fundamentais só possam ter real existência jurídica por força de lei ou que valem apenas com o conteúdo que por estas lhe é dado “[...] porque a Constituição vale por si, prevalece e vincula positivamente o legislador, de modo que uma lei só terá valor jurídico se estiver conforme com a norma constitucional que consagra um direito”.75 75 ANDRADE, 2004, p. 206. 76 ANDRADE, 2004, p. 206–209. 77 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 102. Além disso, José Carlos Vieira de Andrade ao discorrer acerca do significado do princípio da aplicabilidade direta, à luz da Constituição portuguesa, uma vez que esteja limitado tão somente aos direitos, liberdades e garantias, salienta que tal princípio apresenta como efeitos práticos: (1) a retirada do ordenamento jurídico de qualquer norma legal que ofenda o conteúdo de um preceito constitucional relacionado a um direito fundamental; (2) em virtude do princípio da superioridade normativa da Constituição, a obrigatoriedade dos poderes públicos, ao interpretarem as leis, fazerem-no em conformidade com os direitos fundamentais; (3) ante a falta ou insuficiência da lei, os juízes e demais operadores jurídicos devem aplicar os preceitos constitucionais, estando autorizados a concretizarem-nos por via interpretativa (lembra que as formulações vagas e abertas não são óbice para concretização constitucional, visto que o juiz é naturalmente a entidade adequada para determinar o sentido dos conceitos imprecisos contidos nas normas jurídicas).76 Noticia-se o entendimento sustentado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho ao qualificar a norma contida no § 1º do art. 5º da CF/1988 como destituída de qualquer conteúdo, pois não poderia atentar contra a natureza das coisas, de modo que os direitos fundamentais, para o mencionado jurista, só teriam aplicação imediata se as normas que os definissem fossem completas na sua hipótese e no seu dispositivo, ou seja, quando a condição de seu mandamento não possuísse lacuna e quando esse mandamento fosse claro e determinado.77 Uma pergunta se faz: para que foi ali inserida, então ? É inadmissível, portanto, uma interpretação que negue qualquer eficácia ao dispositivo em comento ao recusar–lhe o regime jurídico reforçado que o constituinte reservou para ele. A opinião de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, data maxima venia, induz a confusão entre texto e norma jurídica, esquecendo-se que esta resulta da interpretação necessariamente transformadora que o aplicador do Direito deve ter ao se deparar com aquele. Além disso, tal posicionamento desatende ao princípio da máxima efetividade – um dos princípios instrumentais de interpretação constitucional – que prestigia uma interpretação que extraia das normas constitucionais, de acordo com Dirley da Cunha Júnior, o sentido que lhe atribua maior efetividade possível, visando otimizar ou maximizar a norma constitucional para dela extrair todas as suas potencialidades.78 Tal princípio se traduz na preservação da carga material que cada norma constitucional possui e que deve prevalecer, não sendo aceitável sua nulificação nem que parcial.79 78 CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 217. 79 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 105–106. 80 MI nº 20/DF, MI nº 342/SP, MI nº 721/DF e MI nº 788/DF. 81 A Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, dispõe sobre o exercício do direito de greve (dos trabalhadores em geral), define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. 82 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery pontificam sobre a necessidade de articular teorias que permitam conceber os direitos sociais, não como direitos meramente retóricos, mas sim como direitos possíveis, superando a concepção do Estado Liberal, que privilegiava apenas os direitos negativos”. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal No Estado Constitucional os direitos sociais integram os direitos fundamentais, de modo que sua implementação ou efetivação pode ocorrer mesmo na ausência de uma interposição legislativa. O Supremo Tribunal Federal tem sinalizado nesta direção ao reconhecer, em diversas oportunidades,80 a omissão do Congresso Nacional no que respeita ao dever, que lhe incumbe, de dar concreção de preceitos constitucionais. Logo, no Mandado de Injunção 712–PA, cujo relator foi o Ministro Eros Grau, o STF inaugurou nova fase de sua jurisprudência, porquanto concedeu a injunção para determinar a aplicação da Lei nº 7.783/89,81 no que couber, à situação da omissão legislativa no regramento do direito de greve dos servidores públicos. O exercício do direito social de greve está afirmado no art. 9º da Constituição Federal ao preceituar que “é assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.82 comentada e legislação constitucional. 2. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: RT, 2009. p. 197. 83 O STF, em sessão plenária de 25 de outubro de 2007, por maioria dos Ministros, nos termos do voto do Ministro Relator Eros Grau, conheceu do Mandado de Injunção e propôs, portanto, a solução para a omissão legislativa com a aplicação da Lei 7.783, de 28 de junho de 1989, no que couber, vencidos, parcialmente, os Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio que limitavam a decisão à categoria representada pelo sindicato e estabeleciam condições específicas para o exercício das paralisações. 84 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 712–PA. Mandado de Injunção. Art. 5º, LXXI da Constituição do Brasil. Concessão de efetividade à norma veiculada pelo artigo 37, inciso VII, da Constituição do Brasil. Legitimidade ativa de entidade sindical. Greve dos trabalhadores em geral [art. 9º da Constituição do Brasil]. Aplicação da Lei Federal nº 7.783/89 à greve no serviço público até que sobrevenha lei regulamentadora. Impetrante: Sindicato dos Trabalhadores do Poder O voto do relator, Ministro Eros Grau, inovou de maneira positiva em nosso ordenamento ao conferir efeitos para além do caso concreto, regularizando o direito de greve no serviço público independentemente da necessidade de uma interposição legislativa.83 Cumpre destacar excertos do lapidar voto do Ministro supramencionado: [...] Diante de mora legislativa, cumpre ao Supremo Tribunal Federal decidir no sentido de suprir omissão dessa ordem. Esta Corte não se presta, quando se trate da apreciação de mandados de injunção, a emitir decisões desnutridas de eficácia. A greve, poder de fato, é a arma mais eficaz de que dispõem os trabalhadores visando à conquista de melhores condições de vida. Sua auto-aplicabilidade é inquestionável; trata-se de direito fundamental de caráter instrumental. A Constituição, ao dispor sobre os trabalhadores em geral, não prevê limitação do direito de greve: a eles compete decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dela defender. Por isso a lei não pode restringi-lo, senão protegê-lo, sendo constitucionalmente admissíveis todos os tipos de greve. [...] O argumento de que a Corte estaria então a legislar — o que se afiguraria inconcebível, por ferir a independência e harmonia entre os poderes [art. 2º da Constituição do Brasil] e a separação dos poderes [art. 60, § 4º, III] — é insubsistente. O Poder Judiciário está vinculado pelo dever–poder de, no mandado de injunção, formular supletivamente a norma regulamentadora de que carece o ordenamento jurídico. No mandado de injunção o Poder Judiciário não define norma de decisão, mas enuncia o texto normativo que faltava para, no caso, tornar viável o exercício do direito de greve dos servidores públicos. Em face de tudo, conheço do presente mandado de injunção, para, reconhecendo a falta de norma regulamentadora do direito de greve no serviço público, remover o obstáculo criado por essa omissão e, supletivamente, tornar viável o exercício do direito consagrado no artigo 37, VII, da Constituição do Brasil, nos termos do conjunto normativo enunciado neste voto.84 Judiciário no Estado do Pará (SINJEP). Impetrado: Congresso Nacional. Relator: Ministro Eros Grau. Acórdão publicado no Diário da Justiça Eletrônico em 31.10.2008. Íntegra disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 15 set. 2009. 5. Conclusão Ao concluir este artigo defende-se que toda norma constitucional é dotada de eficácia, incluindo as normas constitucionais que consagram direitos sociais. Essas normas devem ser interpretadas no sentido de garantir-lhes a plena eficácia e aplicabilidade imediata, independentemente da necessidade de interposição legislativa. Caso seja dado maior valor à legislação infraconstitucional do que à própria norma constitucional que define direitos sociais fundamentais – sob o risco de retirar-lhes sua normatividade constitucional – pode revelar, sem dúvida, falta de razoabilidade e destituir estes direitos positivados na Constituição de qualquer sentido. Além disso, os direitos sociais não são normas programáticas, pois impõem ao Estado o dever de modificar a realidade social e de reduzir as desigualdades. Ao considerar os direitos sociais como programas pode conduzir, na prática, à falta de efetividade da Constituição. E mais, deve-se atribuir aos direitos sociais o status de direitos fundamentais que o próprio Poder Constituinte conferiu a eles. Logo, não se trata de direitos que possam ser reduzidos a promessas vazias, sem qualquer tipo de força vinculativa para os poderes públicos, para toda a sociedade civil e para o cidadão, individualmente considerado. 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